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São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

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NELSON ASCHER

Púlpitos e sermões

A irmã Gertrude (Consolata Mukangango) não era uma freira qualquer. Nascida em 1958, em Ruanda, ela fez seus votos em 1984 e, após estudar teologia na França e na Bélgica, regressou, em 91, ao mosteiro de Nossa Senhora da Anunciação, em Sovu (na prefeitura de Butare, sul do país), tornando-se, em 93, a madre superiora do convento local. Seu julgamento pela participação na morte de 7.000 pessoas ou mais começou em abril de 2001, na Bélgica.
Segundo a acusação, a beneditina, que pertencia à etnia Hutu (majoritária), teve papel ativo no genocídio que, em 94, vitimou quase 1 milhão de Tutsis. Como milhares destes, da região de Butare, haviam buscado refúgio no convento, ela chamou as milícias Hutus para que os exterminassem. Quando 500 refugiados fechados numa garagem foram queimados vivos pelos milicianos, a irmã Gertrude e outra acusada, a irmã Maria Kisito (Julienne Mukabutera), levaram-lhes pessoalmente latas de gasolina.
Tão logo Paul Kagame derrotou o regime Hutu, a madre superiora fugiu para a Bélgica onde, a partir de 94, teria vivido tranquilamente se não cometesse o erro de processar, no ano seguinte, um jornalista do obscuro semanário "Solidaire", que escrevera sobre seus feitos. Embora contasse com o silêncio ou proteção de políticos e do clero católico, ela acabou julgada juntamente com a irmã Maria Kisito, o professor de física Vincent Ntezimana e o empresário Alphonse Higaniro (dono de uma fábrica de fósforos). O tribunal, considerando-a culpada, sentenciou-a a quinze anos de prisão.
Quinze anos. Por que não 14 ou 16? Em todo caso, asseguram os especialistas, ela está pagando por seus crimes e o processo foi celebrado enquanto um triunfo da justiça internacional. Daqui a 13 anos no máximo, sua dívida com a humanidade terá sido quitada e a irmã Gertrude se reintegrará produtivamente a alguma sociedade.
Sábado, dia 13, cerca de 300 Augustos Pinochets foram capturados num buraco subterrâneo perto de Tikrit, no Iraque. Saddam Hussein não é um peixe pequeno como as freiras acima ou os ditadores latino-americanos em geral: ele pertence, com Hitler, Stálin, Mao, Idi Amin e Pol Pot, à primeira divisão, a dos responsáveis por pelo menos 1 milhão de mortes. Mal sua captura veio a público, os tópicos que entraram em debate foram, por um lado, o de que a prisão não beneficiaria seus captores e, por outro, que destino lhe dar.
Invadindo a Mesopotâmia, a coalizão, como se sabe, caiu num atoleiro comparável ao vietnamita. A única diferença é a de que se trata de um Vietnã no qual Ho Chi Minh tivesse sido aprisionado, em 1962, ao norte de uma Hanói ocupada há meses pelos americanos. Já que o futuro é incerto, os que torcem contra podem até ter razão. No entretempo, poucos discordam de que Saddam deva ser julgado. Mas onde e, sobretudo, por quem?
Há três hipóteses capazes de serem diversamente combinadas: pelos EUA e seus aliados, que derrotaram o déspota; pelas suas principais vítimas, os iraquianos; ou pela assim chamada comunidade internacional, detentora autoproclamada da legitimidade. A primeira hipótese costuma ser impugnada sob o rótulo de "justiça dos vitoriosos", se bem que não haja sequer a possibilidade de justiça sem uma vitória prévia das forças da lei. Tampouco falta quem assevere que o tirano é criatura dos americanos. Acontece que, se estes lhe deram algum apoio e armas durante sua guerra contra o Irã, seus principais fornecedores de armamentos, patronos político-diplomáticos e parceiros comerciais sempre foram os russos, franceses, chineses e alemães.
Quanto à segunda hipótese, não deixa de ser cômico ver os mesmos países e organizações que insistem na soberania imediata dos iraquianos negando-lhes o direito fundamental de acertar as contas com seus próprios criminosos. E isso nos leva à terceira hipótese de acordo com a qual somente a ONU (ou algo assim) seria neutra, desinteressada, representativa e legítima o suficiente para dispensar uma justiça livre de suspeitas. Será mesmo?
A ONU se compõe em boa parte de ditaduras, cleptocracias ou teocracias, e três dos cinco membros permanentes de seu Conselho de Segurança (França, Rússia, China), mantendo-se até o fim leais ao ditador cativo, tentaram impedir sua deposição. Os tribunais internacionais criados para lidar com os crimes cometidos no Ruanda e na Iugoslávia se mostraram tão lerdos quanto incompetentes e, seguindo a rotina estabelecida pelo humanitarismo europeu, sua predileção, como o caso das freiras ruandenses o demonstra, tem sido mais a de preservar as formalidades e julgar que a de punir.
Malgrado tanta conversa sobre legitimidade, um assunto inesgotável e sem possível conclusão consensual (que antiamericano reconheceria a magnitude dos crimes do iraquiano se isso implicasse justificar a ocupação?), são três também os motivos daqueles que propõem um tribunal internacional para Saddam. A morosidade do processo garantiria de antemão que a administração Bush não tiraria deste lucro nenhum nas próximas eleições presidenciais, algo que, colocado de forma diferente, significa que os favorecidos seriam seus opositores dentro e fora dos EUA. Julgar Saddam em tais instâncias contribuiria para legitimar não tanto o veredicto, como a idéia de uma justiça internacional, idéia que se encontra agora na maior das crises. Finalmente, tirar o açougueiro de Bagdá das mãos de iraquianos ou americanos, levando-o, por exemplo, para Haia, serviria antes de mais nada a um grande objetivo: salvar seu pescoço.


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