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NELSON ASCHER
Púlpitos e sermões
A irmã Gertrude (Consolata
Mukangango) não era uma
freira qualquer. Nascida em 1958,
em Ruanda, ela fez seus votos em
1984 e, após estudar teologia na
França e na Bélgica, regressou,
em 91, ao mosteiro de Nossa Senhora da Anunciação, em Sovu
(na prefeitura de Butare, sul do
país), tornando-se, em 93, a madre superiora do convento local.
Seu julgamento pela participação
na morte de 7.000 pessoas ou
mais começou em abril de 2001,
na Bélgica.
Segundo a acusação, a beneditina, que pertencia à etnia Hutu
(majoritária), teve papel ativo no
genocídio que, em 94, vitimou
quase 1 milhão de Tutsis. Como
milhares destes, da região de Butare, haviam buscado refúgio no
convento, ela chamou as milícias
Hutus para que os exterminassem. Quando 500 refugiados fechados numa garagem foram
queimados vivos pelos milicianos,
a irmã Gertrude e outra acusada,
a irmã Maria Kisito (Julienne
Mukabutera), levaram-lhes pessoalmente latas de gasolina.
Tão logo Paul Kagame derrotou
o regime Hutu, a madre superiora fugiu para a Bélgica onde, a
partir de 94, teria vivido tranquilamente se não cometesse o erro
de processar, no ano seguinte, um
jornalista do obscuro semanário
"Solidaire", que escrevera sobre
seus feitos. Embora contasse com
o silêncio ou proteção de políticos
e do clero católico, ela acabou julgada juntamente com a irmã Maria Kisito, o professor de física
Vincent Ntezimana e o empresário Alphonse Higaniro (dono de
uma fábrica de fósforos). O tribunal, considerando-a culpada, sentenciou-a a quinze anos de prisão.
Quinze anos. Por que não 14 ou
16? Em todo caso, asseguram os
especialistas, ela está pagando
por seus crimes e o processo foi celebrado enquanto um triunfo da
justiça internacional. Daqui a 13
anos no máximo, sua dívida com
a humanidade terá sido quitada
e a irmã Gertrude se reintegrará
produtivamente a alguma sociedade.
Sábado, dia 13, cerca de 300 Augustos Pinochets foram capturados num buraco subterrâneo perto de Tikrit, no Iraque. Saddam
Hussein não é um peixe pequeno
como as freiras acima ou os ditadores latino-americanos em geral: ele pertence, com Hitler, Stálin, Mao, Idi Amin e Pol Pot, à
primeira divisão, a dos responsáveis por pelo menos 1 milhão de
mortes. Mal sua captura veio a
público, os tópicos que entraram
em debate foram, por um lado, o
de que a prisão não beneficiaria
seus captores e, por outro, que
destino lhe dar.
Invadindo a Mesopotâmia, a
coalizão, como se sabe, caiu num
atoleiro comparável ao vietnamita. A única diferença é a de que se
trata de um Vietnã no qual Ho
Chi Minh tivesse sido aprisionado, em 1962, ao norte de uma Hanói ocupada há meses pelos americanos. Já que o futuro é incerto,
os que torcem contra podem até
ter razão. No entretempo, poucos
discordam de que Saddam deva
ser julgado. Mas onde e, sobretudo, por quem?
Há três hipóteses capazes de serem diversamente combinadas:
pelos EUA e seus aliados, que derrotaram o déspota; pelas suas
principais vítimas, os iraquianos;
ou pela assim chamada comunidade internacional, detentora
autoproclamada da legitimidade.
A primeira hipótese costuma ser
impugnada sob o rótulo de "justiça dos vitoriosos", se bem que não
haja sequer a possibilidade de
justiça sem uma vitória prévia
das forças da lei. Tampouco falta
quem assevere que o tirano é criatura dos americanos. Acontece
que, se estes lhe deram algum
apoio e armas durante sua guerra
contra o Irã, seus principais fornecedores de armamentos, patronos político-diplomáticos e parceiros comerciais sempre foram os
russos, franceses, chineses e alemães.
Quanto à segunda hipótese, não
deixa de ser cômico ver os mesmos países e organizações que insistem na soberania imediata dos
iraquianos negando-lhes o direito
fundamental de acertar as contas
com seus próprios criminosos. E
isso nos leva à terceira hipótese de
acordo com a qual somente a
ONU (ou algo assim) seria neutra, desinteressada, representativa e legítima o suficiente para dispensar uma justiça livre de suspeitas. Será mesmo?
A ONU se compõe em boa parte
de ditaduras, cleptocracias ou
teocracias, e três dos cinco membros permanentes de seu Conselho de Segurança (França, Rússia,
China), mantendo-se até o fim
leais ao ditador cativo, tentaram
impedir sua deposição. Os tribunais internacionais criados para
lidar com os crimes cometidos no
Ruanda e na Iugoslávia se mostraram tão lerdos quanto incompetentes e, seguindo a rotina estabelecida pelo humanitarismo europeu, sua predileção, como o caso das freiras ruandenses o demonstra, tem sido mais a de preservar as formalidades e julgar
que a de punir.
Malgrado tanta conversa sobre
legitimidade, um assunto inesgotável e sem possível conclusão
consensual (que antiamericano
reconheceria a magnitude dos
crimes do iraquiano se isso implicasse justificar a ocupação?), são
três também os motivos daqueles
que propõem um tribunal internacional para Saddam. A morosidade do processo garantiria de
antemão que a administração
Bush não tiraria deste lucro nenhum nas próximas eleições presidenciais, algo que, colocado de
forma diferente, significa que os
favorecidos seriam seus opositores dentro e fora dos EUA. Julgar
Saddam em tais instâncias contribuiria para legitimar não tanto
o veredicto, como a idéia de uma
justiça internacional, idéia que se
encontra agora na maior das crises. Finalmente, tirar o açougueiro de Bagdá das mãos de iraquianos ou americanos, levando-o,
por exemplo, para Haia, serviria
antes de mais nada a um grande
objetivo: salvar seu pescoço.
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