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CARLOS HEITOR CONY
Gênios: tentativa de definição
O primeiro e o mais audacioso dos gênios é Cristo. Não o teológico, mas o simples homem
A HUMANIDADE tem produzido
gênios. São ocasionais, escapam às leis, nascem sem fórmulas. E muito raramente.
Já a fabricação dos imbecis é em série. A
Bíblia, em linguagem de quase relatório industrial, já dizia: "Stultorum
numerus est infinitus", o número de
imbecis é infinito. Aceitando a idéia
de uma fabricação em série, podemos notar que o acaso coopera imprevistamente no processo de uma
das peças, e surge uma espécie de alma, um mistério, um o que quer que
seja que a fundição dá ao metal, que
o martelo do montador dá às peças:
a personalidade da máquina, a vida.
Esse acaso é imprevisível: não há
leis nem fórmulas para condicioná-lo. O restante do gado -e somos todos nós- tem apenas a percepção
suficiente para sentir que há algo de
sobre-humano em determinado homem, seja ele carpinteiro, como
Cristo, tapeceiro, como são Paulo,
imperador, como Napoleão, artista
de circo, como Shakespeare.
Seria ridículo tentar promover
uma lista dos maiores gênios. Mesmo porque cada grupo racial ou religioso possui sua lista particular, cada setor do pensamento, cada escola
de arte tem a sua galeria própria.
Contudo, para melhor definirmos a
nossa concepção de gênio, citaremos fortuitamente alguns deles, escolhidos dentre os mais paradoxais
extremos da arte ou da ciência: Cristo, Napoleão, César, Shakespeare.
Não querem -por razões óbvias-
esses nomes afirmar uma identidade entre si nem formar paralelos,
embora os gênios sejam, em última e
filosófica análise, de uma só identidade ontológica, e, além do cimo das
montanhas, além das nuvens -nas
fronteiras com o infinito e nos limites da possível eternidade-, os gênios sejam todos paralelos.
O primeiro e o mais audacioso dos
gênios, por isso mesmo o maior de
todos, é Cristo. Não o Cristo teológico, pois a afirmação de sua natureza
teológica, se por um lado o eleva à
condição de Deus, por outro o anula
em sua condição de homem; com
efeito, a admitir-se as duas naturezas em sua pessoa, o simples homem
que nele restaria não teria outro mérito senão o de emprestar sua matéria a um Deus.
Se, porém, ignorarmos convictamente o seu lado sobrenatural, facilmente se constatará a presença do
gênio naquele nazareno de olhos
cândidos e sonhadores, camelot de
coisas eternas, que acima da ciência
e da arte de seu tempo, acima do
próprio tempo, soube aprofundar-se no estudo da alma humana, soube
elevar a condição humana até onde
nenhum outro místico, nem Buda,
nem Moisés, nem Elias, conseguiu
elevar. Soube não apenas interpretar o homem e sua alma mas a si
mesmo -"Ego sum veritas".
César, ao contrário de Cristo, que
foi apenas um profeta nômade e sonhador, foi quase tudo o que poderia
ser um romano e um dono do mundo. Cônsul, pretor, orador, historiador, autor de um tratado sobre a
analogia, filósofo, devasso, soldado e
finalmente César -Caio Júlio não
seria nada se não tivesse sido um legitimo gênio da humanidade.
Em sua auto-suficiência, antes do
galileu se dizer Filho de Deus, ele
tentou se passar por filho também
de deuses e teve sacerdotes, templos
e culto. "Não tremei! César vai a bordo!", gritou em certa noite de temporal, encorajando os barqueiros
que tremiam, muito antes de um outro repetir em Tiberíades: "Homens
de pouca fé, por que duvidastes?"
Napoleão, como nenhum outro
homem, sentiu a grande inquietação
da alma humana. Impetuoso demais
para o laboratório da ciência ou da
cela do místico, tentou fazer de tudo,
em tudo se meter, para nada deixar
sem os estigmas de suas águias
-símbolo muito mais apropriado às
suas inquietações do que às suas armas. Em plena campanha do Egito,
lamentou que a Europa estivesse
habitada por "toupeiras que protestariam caso se proclamasse Filho do
Padre Eterno". Preocupado com todo o mundo físico e metafísico que o
rodeava, suas leis, seu direito, sua
história, seu futuro -foi bem o
exemplo mais notável desse acaso
que gera super-homens.
Shakespeare foi um apagado artista circense. Como autor, sua obra ficava em plano inferior a do seu conterrâneo Ben Johnson. Hoje, sabemos tudo: como sua existência vem
sendo negada para desculpar a mediocridade dos que não perceberam
o seu gênio universal. Cristo, César,
Napoleão também foram negados,
os medíocres não se conformam
com a existência dos gênios, e nem
sempre há calvários, idos de março
ou santas Helenas à disposição. Bacon, Jorge 1º e Cristopher Marlowe
já foram, sucessivamente, os autores
da obra shakespeareana. Destino
afinal lógico para quem enunciara a
questão do ser ou não ser.
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