São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Abrindo a caixa-preta

O fantasma da senilidade como eventual destino familiar acompanha um lento processo de despedida

QUANDO SE trata de garantir ordem mínima à sucessão tumultuada de eus que vão, aos poucos, compondo nossa identidade, personagens de ficção e nós, comuns mortais, estaríamos igualmente à deriva, não fosse a memória. Como um recém-nascido precisa do leite materno, estamos na dependência desta fiadora esquiva do equilíbrio individual, confiados a seus caprichos e porosidade.
Em "O Lugar Escuro", Heloisa Seixas, cronista, contista e romancista carioca, debruçou-se sobre o avanço desfigurante do mal de Alzheimer sobre sua mãe. Entre o relato pessoal e a reflexão ficcional, o livro coloca-se sob epígrafe da autora que valeria também para o recente "O Filho Eterno", de Cristóvão Tezza: "O escritor é um condenado, cuja alma é exposta em praça pública como o corpo de um traidor".
Mas o interesse da história não está na força emocional que, de fato, tem a narrativa nem em seu eventual efeito catártico. A ficção não deve nem pode renunciar ao que a separa da crônica e a aproxima da vocação universalista da filosofia. É da ficcionista a sensibilidade que adivinha no dia do aniversário da filha, deixando a casa para morar sozinha, o "marco zero" da doença da mãe, o "começo de seu caminho de sombras" e o fixa na imagem da senhora desorientada, procurando, em casa, lobbies de hotéis que já deixara.
A autonomia cada vez menor da mãe, o tornar-se estrangeira no próprio corpo, presa do puxa-empurra de estimulantes e calmantes, a desorganização da rotina, as fases sucessivas da demência -do divertido ao estranho, do perturbador ao angustiante- são motivos que Heloisa Seixas combina à investigação dos demônios ambíguos da vida familiar, devoção mesclada a ressentimento, sacrifícios cercados por cobranças.
Por compensação, para que a mãe possa esquecer, a filha fica obrigada a lembrar, exumar os loucos domésticos e reexaminar feridas cicatrizadas. Os mecanismos que reconstroem, invertida, a relação de mãe e filha sobre as novas bases da afeição e reconhecimento possíveis, o fantasma da senilidade como eventual destino familiar, acompanham um lento processo de despedida, luto em vida.
"Em meio ao cérebro destroçado, há escaninhos intactos. Como naquela loja, no subterrâneo das Torres Gêmeas, em Nova York, onde, nas escavações, os bombeiros encontraram uma vitrine inteira, cheia de copos de cristal."
A pergunta constante é pela ordem de razões que preserva intactas marchinhas de carnaval, remotas e obscuras, renunciando aos contornos de pessoas próximas e caras.
"O Lugar Escuro" pauta-se pela espiral descendente destes pequenos espantos, multiplicados e agravados. Seu registro é confessional, sim, mas, atento ao poder de exemplaridade, busca a face humana possível para o pesadelo conhecido como Alzheimer, ainda desconhecido de poetas e neurocientistas.


O LUGAR ESCURO
Autor:
Heloisa Seixas
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 25,90 (136 págs.)
Avaliação: bom


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