São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

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LUIZ FELIPE PONDÉ

Andréia Três


Esperava congelada alguma indicação de que a hora da infâmia estava para acontecer

A NDRÉIA SOFRERA muito nos últimos dias. Darei apenas um breve esboço dos acontecimentos e, mesmo assim, omitindo alguns detalhes a fim de poupá-la de ainda mais agonia. Ela estava só. Rompera com o noivo, recusara convites de amigos, deixara de vez o emprego.
Vejamos os fatos que aconteceram depois da última vez que a vimos, e o leitor tirará suas próprias conclusões. Seu medo aumentara na medida em que nascia nela o desejo de dizer "Quero este homem para mim!".
Seu noivo, paralisado pelo desejo de agradá-la, lhe dava nojo. Descobrira uma verdade ancestral, mas insuportável: "Homens que querem agradar são ridículos! Serei masoquista?". Este era um trabalho para sua analista. Entretanto, sua analista era uma mulher de 50 anos, separada e solitária. Seu rosto brilhava com o brilho cremoso do pânico diante da idade. Como ela poderia ajudá-la? Ceticismo e crueldade é uma mistura infeliz. Ela precisava controlar seu cinismo.
Suas amigas pareciam todas seguras dos sentimentos e fidelidades. Saber disso aumentava o desespero de nossa heroína que caminhava a passos largos para o pior de todos os encontros: com a temida mulher descontrolada que via no espelho.
Mas esse descontrole era uma mistura de fraqueza e força. A fragilidade surgia diante do gesto, da palavra, da presença daquele homem indiferente. A força era sua indiferença para com o que os outros pensariam. Pagou caro por isso.
O sentimento de que poderia, afinal, ser apenas uma mulher vulgar, perdida entre o ideal contemporâneo da mulher livre e o atavismo da escravidão ao seu sexo, aumentara desde nosso encontro último com ela no elevador há alguns dias atrás.
Aliás, vale lembrar que, ao sair do elevador, com sua calça justa e seu pânico diante "das forças do destino", Andréia teve ainda que enfrentar um convite inesperado do "indiferente": "Vamos tomar uma cerveja hoje no final do dia?". Desta vez, não apenas o suor escorreu pelo corpo, a saliva lhe encheu a boca. Definitivamente, havia nela um animal desconhecido começando a falar. Seria esta uma nova linguagem a aprender no futuro? Correu para o banheiro, e diante do espelho, sentindo o gosto da saliva na boca e, com o batom entre os dedos, sorriu para este animal inesperado.
Voltando à sua mesa, em meio a ouras mesas, Andréia sentia-se nua.
Os sons eram estranhos, os olhos estavam sobre seu corpo. O que, afinal, estaria o seu corpo traindo? Um movimento descontrolado? Um gesto finalmente solto, depois de tantos anos querendo descobrir como deveria se comportar no mundo?
As horas do dia se arrastavam. Depois do rápido convite chegando ao 13º andar, o "indiferente" nada mais dissera, aumentando nela o sentimento de que um segredo infame nascia entre eles. A idéia de que ela fosse capaz de uma infâmia já não lhe assustava mais. O "indiferente" não lhe dirigiu um único olhar ao longo do dia.
Ali estava o sentido do seu pesadelo, na noite anterior, quando se via morta, no caixão, ouvindo as pessoas lhe humilhando: nada a impediria de ser infiel e, portanto, ela era uma mulher infame. Tinha plena consciência do que estava fazendo: sabia que diriam que ela estava pensando na carreira, que ela não merecia o namorado que tinha e que só uma mulher infame sairia com um homem casado cuja esposa estava grávida.
Passava das 20 horas. Todos saíam. Andréia, parada, olhando o vazio, esperava congelada alguma indicação de que a hora da infâmia estava para acontecer. De repente: "Andréia, venha na minha sala, por favor". Ela se levantou. No caminho, olhou nos olhos de uma colega de trabalho, feia e sozinha. Do rosto da feia escorria a inveja. E a inveja não perdoa a beleza.
Rumores dão como certo que foi a inveja que destruiu Andréia. Alguns estão certos de que ela mereceu. Teria a feia seguido o casal infame? Ela entrou. Com as mãos no bolso da calça justa, sabia que não havia mais retorno.
"Então, quer tomar algu- ma coisa?" "Vamos" "É melhor não irmos aqui perto...muita gente conhecida..." "Claro!" "Você tem compromisso hoje?" "Não, desmarquei tudo..." Percebeu que falara demais. A partir daí, caro leitor, eu, que por uma ironia do destino fui testemunha destes fatos, farei silêncio. Amores secretos devem permanecer em segredo. Direi apenas que vi os dois naquela noite. Tive a impressão de que ela chorava. A mão dele pousada sobre a dela indicava, finalmente, a posse.

luiz.ponde@grupofolha.com.br


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