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CONTARDO CALLIGARIS
Nostalgia dos tubarões
No último número da revista "Science" (vol. 299, nš
5.605), Julia K. Baum e outros
pesquisadores da Universidade
Dalhousie (Nova Escócia, Canadá) apresentam uma pesquisa sobre "Colapso e Conservação das
Populações de Tubarões no
Atlântico Noroeste".
Entre 1986 e 2000, os tubarões,
da Terra Nova a Recife, declinaram brutalmente. Os números
são diferentes segundo as espécies, mas, com raras exceções,
sempre significativos. O tubarão-martelo quase sumiu (diminuição de 89%), e o tubarão-branco
(comedor de banhistas e protagonista do filme "Tubarão") perdeu
79% de seus efetivos.
Chegou-se a esses resultados
acompanhando as variações no
número de tubarões capturados
acidentalmente pelos pescadores
de atum e de peixe-espada. Nesse
tipo de pesca, as linhas carregam
centenas de iscas que qualquer
peixe morde com apetite. Ora, essas linhas trazem de volta cada
vez menos tubarões.
O próprio caráter não seletivo
da pesca deve ser responsável pelo
declínio dos tubarões. A isso se
adiciona, hoje, a captura intencional: nos EUA, a pesca do tubarão é regulamentada, mas os pescadores europeus trabalham livremente, encorajados pela popularidade da carne de tubarão nos
restaurantes da Europa.
Os pesquisadores manifestam
sua preocupação. Afinal, os tubarões levam de 12 a 18 anos para
atingir a maturidade reprodutiva, e as fêmeas, no decorrer de sua
vida, criam, no máximo, dois tubarõezinhos. Será difícil inverter
a tendência, mesmo com fortes
políticas de proteção.
O tom preocupado do artigo
desperta uma certa vontade de
zombar. Afinal, danem-se os tubarões. Se querem sobreviver, é
fácil: tornem-se vegetarianos. Evitarão as iscas e, assim, pararão de
encher (ou morder) o saco da gente. Os pesquisadores canadenses,
consternados, nos lembrariam
que o fenômeno compromete o
equilíbrio ecológico. Sem tubarões, seremos invadidos pelas focas, que ninguém comeria mais,
e, na pança de tantas focas, sumiriam as sardinhas. Ora, sem sardinhas, como almoçar no porto
de Lisboa? Pois bem, responderão
os zombadores, que volte a moda
dos casacos de pele, reabra-se a
caça aos "bebês" de foca e, pronto,
as sardinhas estarão salvas.
O declínio dos tubarões produzirá uma certa alegria entre banhistas e surfistas. Embora os ataques sejam raros, não duvido que,
logo em janeiro, muitos achem
ótimo que haja menos bichos
dentuços nadando no fundo do
mar. Comentarão que, para preocupar-se com o declínio dos tubarões, só os canadenses mesmo,
que não entram na água do mar
nem no verão.
Mas estou também convencido
de que, entre os próprios surfistas
que expõem assiduamente suas
pernas apetitosas aos tubarões,
muitos vão se manifestar contra a
pesca industrial e seus estragos
nas fileiras dos predadores do
Atlântico.
É uma contradição constante.
Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas
essa fé convive sempre com a nostalgia do cosmo imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza.
Ora, os dinossauros não sumiram por culpa nossa, e uma enorme parte da evolução se fez em
nossa ausência. Além disso, as
formigas, ao construir colônias de
formigueiros, não se preocupam
com o plano da natureza. Idem
para os castores quando constroem seus diques. Sem falar nos
tubarões, que não se preocupam
nem um pouco com a extinção
dos surfistas e dos turistas em nossas praias. Ou seja, em princípio,
as espécies "normais" modificam
o hábitat e tentam impor suas necessidades sem grandes tormentos de consciência.
Essa era também a posição dos
homens até, mais ou menos, dois
séculos atrás. Paradoxalmente, a
modernidade levou ao paroxismo
a vontade de adaptar o mundo ao
nosso capricho e, ao mesmo tempo, as lágrimas (de crocodilo) que
choram os encantos perdidos de
um mundo preservado. A história
se acelerou, mas foram inventados os museus, a preservação dos
monumentos históricos e os parques naturais. Com novas armas
e armadilhas, exterminamos os
lobos que ameaçavam nossos rebanhos; logo, criamos lobos em
cativeiro e tentamos reintroduzi-los em nossas montanhas. O Ocidente colonizou (ou pós-colonizou) quase o mundo inteiro e
agora lamenta a variedade perdida das culturas. Só falta recriar e
reintroduzir os sioux nas planícies do oeste americano e os tupis-guaranis na mata atlântica.
Admiro o heroísmo preservacionista, mas desconfio um pouco
dele. Há o sublime sacrifício: em
nome da ordem cósmica, amo os
tubarões, embora me mordam.
Há a aparente abnegação: queria
que o mundo não fosse sujo pela
minha própria presença.
E há, atrás desses nobres sentimentos, um extremo narcisismo.
Pois a abnegação afirma que somos completamente diferentes
das outras espécies: seríamos os
únicos que podem colocar o bem
do ecossistema acima de nossos
interesses imediatos.
Alguém responderá: nada disso,
cuidamos da ordem do mundo
apenas para garantir nossa sobrevivência. Pois é, lobos e tubarões agem diferente: não estão
preocupados com sua morte a
ponto de querer se consolar planejando a eternidade do planeta.
ccalligari@uol.com.br
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