São Paulo, sexta, 23 de janeiro de 1998.



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CINEMA ESTRÉIAS
'Será que Ele É?' peca pelas boas intenções

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

O argumento de "Será que Ele É?", de Frank Oz, é inspirado numa anedota real. Ao agradecer pelo Oscar recebido por sua interpretação em "Filadélfia", Tom Hanks decidiu homenagear um antigo professor que o havia inspirado, revelando a milhões de espectadores, durante a cerimônia, e com orgulho, que o mestre era gay -sem saber que ninguém sabia. Não foram poucos os problemas que criou para o homenageado.
"Será que Ele É?" coloca Kevin Kline no lugar de um professor de literatura inglesa numa típica escola de segundo grau de uma cidadezinha do interior do Estado de Indiana e Matt Dillon no papel do ator que recebe o Oscar.
Só que, no filme, é a revelação do ator que faz o professor (depois de um período turbulento de escândalo e resistência) acabar caindo em si, assumindo sua nova identidade e provocando, numa espécie de "efeito bola de neve", a transformação e a solidariedade exultante -e inverossímil- de toda a comunidade antes profundamente conservadora.
O eixo principal da comédia gira em torno do choque da revelação numa cidadezinha pacata e convencional dos Estados Unidos. É o que se deduz já a partir do trailer -aliás, melhor que o filme.
É o que teria explorado até as últimas consequências um Billy Wilder ou mesmo um Ernst Lubitsch se lhes caísse um argumento desses nas mãos. Mas os tempos -sobretudo americanos- são politicamente corretos. E, sob esse viés, não há comédia que saia ilesa.
Não se trata de defender aqui que o humor tem de ser preconceituoso ou mau para ser bom, mas ele não pode ser controlado por razões de didatismo moral. Tem de ter a liberdade para rir de tudo (e de si mesmo), para escarnecer sem limites. O problema da tentativa de combinar deboche com lições morais de bom comportamento social, por mais justas que sejam, é que os dois são, por princípio, contraditórios.
No fundo, "Será que Ele É?" tenta mostrar (como boa parte dos filmes sobre "temas gays" que Hollywood, de olho num novo segmento do mercado e depois de muito resistir, decidiu fazer) que eles devem ser aceitos e respeitados como seres humanos, que o preconceito pode ser vencido até mesmo numa típica cidadezinha do interior.
É óbvio que se trata de um bom sentimento, mas as grandes comédias não são feitas, assim como o bom cinema (ou a boa literatura etc.), de bons sentimentos. "Será que Ele É?" é um filme singelo, mas falta-lhe malícia.
Como comédia, usando o gênero como um simples meio para mostrar o prazer do "coming out", de se assumir como gay, conquistando seu lugar no mundo mesmo entre os mais conservadores (muitas vezes para se tornar tão conservador quanto), o filme peca por querer educar. Falta-lhe uma das maiores qualidades do humor: a capacidade de rir de si mesmo -no caso, das intenções politicamente (e mercadologicamente) corretas que lhe dão origem.

Filme: Será que Ele É? Produção: EUA, 1997 Direção: Frank Oz Com: Kevin Kline, Joan Cusack, Matt Dillon, Debbie Reynolds e Tom Selleck
Internet: http://www.inandout.com/ Quando: a partir de hoje, nos cines Paissandu, West Plaza 1, Plaza Sul 1 e circuito



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