São Paulo, sábado, 23 de janeiro de 1999

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ANÁLISE
Aos 12, ninguém tem voz

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

O showbiz erudito tem uma compulsiva atração pela estereotipia. Charlotte Church é a vítima da vez. Caiu na rede comercial que há mais de dois séculos procura identificar e lançar ao mercado crianças-prodígio. Algumas vezes deu certo, como em Mozart ou Mendelssohn. Com a senhorita Church, novamente, não deu.
Ela tem 12 anos. Os marqueteiros tentam fazer dela o fenômeno vocal da virada do milênio, ou qualquer baboseira do gênero. Talvez consigam porque há sempre muito dinheiro envolvido. E porque o primeiro CD da senhorita Church é algo como a versão juvenil e condensada dos Três Tenores.
A voz infantil pode ter um timbre bonito. É o caso da senhorita Church. Mas a voz dela, mesmo afinada, é imperfeita. Seus legatos são cruelmente toscos, sua noção de fraseado é das mais primárias, e seu bom instinto de harmonia não consegue esconder uma floresta de equívocos que só dez anos de conservatório poderiam corrigir.
É possível contra-argumentar que não dá para esperar mais de uma criança. Pois então que não a arrancassem do coral de igreja onde por certo se desempenhava razoavelmente bem, para lançá-la -os pais e os empresários estão faturando alto com isso- num mercado em que as exigências de desempenho são bem maiores.
"Voice of an Angel", o primeiro e talvez o último CD da atual senhorita Church (no próximo, sua voz já será outra), tem o acompanhamento da orquestra e coro da Ópera Nacional do País de Gales. São bons músicos.
Mas eles sucumbem ao besteirol dos arranjos. Há excesso de intervenção da harpa. O órgão entra onde deveriam entrar violoncelos e contrabaixos. E o uso abusivo do playback lembra os maus momentos de gravações da Broadway.
No fundo, qualquer farmacêutico sabe que um coquetel concentrado pode produzir no organismo um efeito oposto ao que seria provocado separadamente por cada medicamento que o compõe.
Com a música acontece frequentemente o mesmo. O uso indiscriminado de chavões torna qualquer interpretação indigesta. A senhorita Church não tem culpa. Afinal, ela é uma pobre vítima dos adultos que tentam transformá-la em produto de excelência precoce.



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