São Paulo, sábado, 23 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO - LANÇAMENTO
Coletânea traz humanismo de Hobsbawm

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Mais do que em qualquer outro livro de Eric Hobsbawm publicado nos últimos anos, essa coletânea de artigos a que se deu o título um tanto enganador de "Pessoas Extraordinárias - Resistência, Rebelião e Jazz" (editora Paz e Terra) revela, para bem ou para mal, o que significa ter se mantido como "historiador marxista" quando boa parte da realidade conspirava para a ridicularização e o anacronismo de tal definição.
Os editores optaram por usar na contracapa uma bela declaração do autor em entrevista ao jornal britânico "The Independent", que vale citar: "A causa a que devotei boa parte da minha vida não prosperou. Espero que isso tenha me transformado em um historiador melhor, já que a melhor história é escrita por aqueles que perderam algo".
Diante desse raciocínio quase trágico e do título do livro, o leitor pode acabar com a idéia apressada de que o que tem nas mãos inaugura, como sugere a orelha, "um novo parâmetro para a história do proletariado", não por meio de uma idéia de classe teoricamente imposta à massa dos indivíduos, mas pela análise desses indivíduos criando a consciência de classe a partir de suas ações individuais. Não é bem assim.
Em primeiro lugar, a maioria desses artigos já havia sido publicada anteriormente, antes que fosse possível ao historiador chegar à sua conclusão trágica e madura sobre o fracasso da causa a que devotou boa parte de sua vida.
São textos que datam dos anos 50 em diante. Apesar de trazerem cada um uma pequena introdução, situando o momento em que foram escritos e o que hoje pode haver neles de atual, em grande parte tornaram-se mais datados do que a edição quer deixar transparecer.
˛
Davi e Golias
É o caso, entre outros, do artigo sobre o Vietnã e a dinâmica da guerrilha, de 1965, ou do texto sobre Maio de 68, publicado em 69. Ambos têm interesse histórico, sobretudo pela data de sua publicação. Mas essa mesma data limita a amplitude da análise.
Uma breve introdução ao texto sobre o Vietnã tenta atualizar a reflexão sobre a guerrilha, comparando, nos dias de hoje, o Iraque a Davi lutando contra Golias (as superpotências lideradas por Washington): "Davi ainda pode triunfar sobre Golias". E, por mais que se repudie a ação norte-americana nesse episódio, é difícil não se constranger com o tom panfletário e simplista dessa velha imagem marxista aplicada a um contexto que já não a comporta.
Em segundo lugar, são poucos, entre esses artigos, os que põem realmente no centro da argumentação os indivíduos, as "pessoas extraordinárias" a que se refere o título: são, em geral, os capítulos que foram publicados originalmente como resenhas de biografias de personagens ilustres, como Thomas Paine, Duke Ellington ou o bandido Giuliano.
Em outros textos, como "Os Destruidores de Máquinas", de 1952, embora haja um sentido revisionista em relação ao marxismo tradicional, com a tentativa de recuperar o valor histórico e politicamente positivo de um movimento como o dos ludistas na Inglaterra da Revolução Industrial, as referências ao operário Ned Ludd, que inspirou tais manifestações, são breves e sem maior significado para a análise.
˛
Arte política
Dentro de uma lógica de mercado, "Pessoas Extraordinárias" é sem dúvida um "bom título", ainda mais numa época em que o público corre às livrarias à cata de todo tipo de biografias -e não só de celebridades-, mas pode decepcionar o leitor desavisado. Porque diz muito pouco sobre o que esse livro realmente é.
Para além desse artifício de marketing, no entanto, há algo bastante simpático -e cada vez mais raro- no humanismo engajado de Hobsbawm, e mesmo na sua visão por vezes conservadora em relação à arte e ao comportamento. Em especial nos textos sobre jazz.
Mais do que as relações entre arte e política analisadas com propriedade pelo historiador, o que se destaca nesse livro é a idéia, hoje em desuso, da defesa da cultura com base em princípios e valores vitais, abrangentes, humanistas, e não cinicamente mercadológicos.
A velha idéia de uma arte política, que no passado chegou a produzir inúmeras excrescências e desvios retrógrados, ganha aqui um sentido de renovação, nem que seja apenas por mostrar o óbvio: que a arte tem um valor prioritário, e não é o de mercado.
˛

Livro: Pessoas Extraordinárias - Resistência, Rebelião e Jazz Autor: Eric Hobsbawm Tradução: Irene Hirsch Lançamento: Paz e Terra Quanto: R$ 39 (434 págs.)



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.