São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2001

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CRÍTICA

Lecter é o herói do fascismo ianque

TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um gênio do crime, de mil olhos e disfarces, figura sofisticada, sedutora, hipnótica, capaz de dominar, psicologicamente, qualquer mortal. Trata-se de dr. Mabuse, personagem de Fritz Lang que fez parte do imaginário protonazista, mas a descrição cabe ao dr. Lecter, encarnado por Anthony Hopkins. Ele é, hoje, o dr. Mabuse da América, o herói serial killer do fascismo ianque.
Ninguém resiste aos encantos de Lecter: num fim-de-semana, milhões de americanos se amontoaram nas salas de cinema para cultuar o novo Mabuse. Eles sabem que apenas Hannibal the Cannibal, o mito antropófago de uma civilização em processo de autofagia, é capaz de mostrar as vísceras da cultura americana.
A primeira vez que o dr. Mabuse aportou na América foi nos anos 30, por meio da influência exercida pela série criada por Lang nos filmes de gângster. Hoje, os serial killers exercem o fascínio que os gângsteres exerciam, mas já não precisam ser mortos no final em nome dos bons costumes (ou da hipocrisia social). Ao contrário, eles devem sobreviver para sacramentar, numa série de filmes, os seus assassinatos -"Hannibal", nessa perspectiva, não é tanto uma sequência de "O Silêncio dos Inocentes", mas o prólogo de um terceiro filme.
Os filmes de gângster já usavam a violência de seus personagens para atrair o grande público, mas ainda encaravam o crime como um problema social, extrínseco à "boa sociedade" e passível de ser extirpado pelo Estado. Hoje, filmes como "Hannibal" encontram na corrupção do Estado e da "boa sociedade" um pretexto para celebrar a ação genocida de serial killers -sejam milionários, policiais ou executivos, as vítimas do dr. Lecter, o canibal refinado (que nunca se suja de sangue), representam, de alguma forma, a corrupção do Estado. Seja como for, o processo de heroicização de Hannibal é mais um sintoma de que o assassínio já não pode ser encarado senão como um problema cultural nos EUA, o país dos serial killers.
Mas não é de bom tom levar um filme como "Hannibal" tão a sério. Afinal, seu humor negro é o maior sinal de sua auto-ironia. Nesse sentido, "O Silêncio dos Inocentes" era mais honesto em seu inventário de fobias. O filme nos dava o que íamos procurar nele: medo.
Esta continuação já não dá medo, mas é, de certo, mais temerária. Mudando o foco do personagem da agente do FBI Clarice Starling para o do dr. Lecter, o filme deixa de nos fazer temer o assassino para torná-lo um mito. Lecter revela-se aqui mais sedutor do que nunca, conquistando, por sua finesse e erudição, até mesmo o coração de Clarice (não literalmente... ainda). A pretensão última do dr. Lecter é conquistar, pela ironia, a adesão intelectual do espectador. Então talvez seja bom avisar: a verdadeira intenção de Lecter é servir-nos o nosso próprio cérebro como jantar. Uma questão de apetite, enfim.



Hannibal
Hannibal

  
Direção: Ridley Scott
Produção: EUA, 2001
Com: Anthony Hopkins, Julianne Moore
Quando: a partir de hoje nos cines Anália Franco, Belas Artes, Gemini, Interlagos, Ibirapuera, Morumbi, Tamboré e circuito




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