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CRÍTICA
Lecter é o herói do fascismo ianque
TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um gênio do crime, de mil
olhos e disfarces, figura sofisticada, sedutora, hipnótica, capaz de dominar, psicologicamente, qualquer mortal. Trata-se de
dr. Mabuse, personagem de Fritz
Lang que fez parte do imaginário
protonazista, mas a descrição cabe ao dr. Lecter, encarnado por
Anthony Hopkins. Ele é, hoje, o
dr. Mabuse da América, o herói
serial killer do fascismo ianque.
Ninguém resiste aos encantos
de Lecter: num fim-de-semana,
milhões de americanos se amontoaram nas salas de cinema para
cultuar o novo Mabuse. Eles sabem que apenas Hannibal the
Cannibal, o mito antropófago de
uma civilização em processo de
autofagia, é capaz de mostrar as
vísceras da cultura americana.
A primeira vez que o dr. Mabuse aportou na América foi nos
anos 30, por meio da influência
exercida pela série criada por
Lang nos filmes de gângster. Hoje,
os serial killers exercem o fascínio
que os gângsteres exerciam, mas
já não precisam ser mortos no final em nome dos bons costumes
(ou da hipocrisia social). Ao contrário, eles devem sobreviver para
sacramentar, numa série de filmes, os seus assassinatos
-"Hannibal", nessa perspectiva,
não é tanto uma sequência de "O
Silêncio dos Inocentes", mas o
prólogo de um terceiro filme.
Os filmes de gângster já usavam
a violência de seus personagens
para atrair o grande público, mas
ainda encaravam o crime como
um problema social, extrínseco à
"boa sociedade" e passível de ser
extirpado pelo Estado. Hoje, filmes como "Hannibal" encontram na corrupção do Estado e da
"boa sociedade" um pretexto para celebrar a ação genocida de serial killers -sejam milionários,
policiais ou executivos, as vítimas
do dr. Lecter, o canibal refinado
(que nunca se suja de sangue), representam, de alguma forma, a
corrupção do Estado. Seja como
for, o processo de heroicização de
Hannibal é mais um sintoma de
que o assassínio já não pode ser
encarado senão como um problema cultural nos EUA, o país dos
serial killers.
Mas não é de bom tom levar um
filme como "Hannibal" tão a sério. Afinal, seu humor negro é o
maior sinal de sua auto-ironia.
Nesse sentido, "O Silêncio dos
Inocentes" era mais honesto em
seu inventário de fobias. O filme
nos dava o que íamos procurar
nele: medo.
Esta continuação já não dá medo, mas é, de certo, mais temerária. Mudando o foco do personagem da agente do FBI Clarice
Starling para o do dr. Lecter, o filme deixa de nos fazer temer o assassino para torná-lo um mito.
Lecter revela-se aqui mais sedutor
do que nunca, conquistando, por
sua finesse e erudição, até mesmo
o coração de Clarice (não literalmente... ainda). A pretensão última do dr. Lecter é conquistar, pela ironia, a adesão intelectual do
espectador. Então talvez seja bom
avisar: a verdadeira intenção de
Lecter é servir-nos o nosso próprio cérebro como jantar. Uma
questão de apetite, enfim.
Hannibal
Hannibal
Direção: Ridley Scott
Produção: EUA, 2001
Com: Anthony Hopkins, Julianne Moore
Quando: a partir de hoje nos cines
Anália Franco, Belas Artes, Gemini,
Interlagos, Ibirapuera, Morumbi,
Tamboré e circuito
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