São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

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O homem-espelho

Após 13 anos afastado, Hudinilson Junior encerra mostra e prepara série de grafites

LUCRECIA ZAPPI
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Hudinilson Urbano Junior, 47, abrocha um espelho no paletó e ajeita o cabelo para trás da orelha. O artista, que polemizou em São Paulo com as reproduções de seu corpo em outdoors pela cidade e participou do grupo 3Nós3, nos anos 70, gosta de associar sua imagem a Narciso, e reverencia Jean Genet porque "para Genet, num texto de Walter Benjamin, Narciso nunca morre", diz.
Após 13 anos sem fazer uma exposição individual sequer, Hudinilson voltou à tona. A mostra "São Paulo Narcísico", exposta até o dia 20 de fevereiro, foi uma homenagem ao aniversário de São Paulo. O artista expôs na Galeria Sesc Paulista alguns painéis feitos de grafite, azulejo e xerox, mas, de longe, a mostra não tem seus trabalhos mais polêmicos do início dos anos 80, época em que grafitava os muros de São Paulo e fazia "arte xerox".
É nesse jogo narcísico de espelhos que a máquina de xerox se encaixa como peça fundamental em sua obra. Na polêmica intervenção "Xerox Action", feita em 1983 durante a exposição coletiva no Museu de Arte Moderna, no Ibirapuera, o "voyeurismo de mim mesmo", nas palavras do artista, aflorou: "Eu literalmente transei com a máquina".
O artista registrou através das fotocópias seu corpo nu e o enquadrou em outdoors. Aqui, "o esquartejamento é programado e preciso", segundo o crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet, 68, que observa, no catálogo da exposição, que o "corpo", um tema constante na obra de Hudinilson, ganha uma dimensão menos "natural" nos outdoors. "Mais pensamos entrar na intimidade desse corpo que ilusoriamente se oferece, mais nos defrontamos com um sistema", escreve Bernardet.
Hudinilson não foi o primeiro a desdobrar esse sistema de fotocópias em outdoors. O artista recifense multimídia Paulo Brusky, dois anos antes da exposição no MAM, em 1981, havia feito o "Artedoors" em Recife e recebeu o prêmio Guggenheim de Artes Visuais. No entanto, Hudinilson teve um papel na vanguarda da arte feita pelas ruas. De acordo com Mário Ramiro, "o xerox que ele fazia foi precursor da gráfica eletrônica". Ramiro, ao lado de Hudinilson e Rafael França, morto em 1991, foi integrante do 3Nós3.
Hudinilson diz ter aprendido arte fazendo visitas ao museu Lasar Segall, de onde foi vizinho durante alguns anos. Outra influência que cita é a artista Regina Silveira, e, de sua aproximação com a obra de Silveira, passou a fazer "arte postal", intervenções sobre envelopes que passavam pelo correio, com uma série de carimbos como "viajou sem passaporte" ou "pinto não pode".
Ultimamente tem se dedicado à elaboração de painéis, como os expostos na galeria Sesc Paulista, com textura aparente, feitos com spray sobre tecidos colados uns aos outros. O fascínio pelo corpo nu masculino nos painéis surge num rearranjo de figuras clássicas, clichês de "belos gregos", sempre ao lado de colunas.
É uma herança da cultura sub-pop de grafites de rua que Hudinilson levou para seu apartamento-ateliê de um quarto e uma sala, onde mora há dez anos. O espaço é minúsculo, mas Hudinilson se ajeita e consegue fazer com que cada centímetro dos cômodos seja funcional para a elaboração de suas obras.
Os painéis são feitos no chão e servem como tapetes temporários, porque, segundo o artista, é importante que eles ganhem "matéria". Na parede estão dependuradas algumas de suas roupas "sem título". Segundo o artista, essas peças, que foram endurecidas com cola e transformadas em obras de arte, representam as "três superfícies do corpo": "Tenho radiografias e xerox do meu corpo, além das roupas, minha segunda pele", diz.
Mas o que mais impressiona em seu apartamento são os "livros-referência", que Hudinilson faz há 20 anos. "Você pode não gostar da obra dos grafites, porque afinal aquilo teve sua época, mas os livros são uma loucura total. É um universo muito interessante", diz Ramiro.
São mais 80 cadernos com colagens, a maioria de fotos de homens nus em relações sexuais, imagens de obras suas e de outros artistas, além de textos seus escritos à mão.
Até sobre a cama em que dorme Hudinilson coleciona montes de jornais e revistas. Ao lado, estão dispostos uma cola, uma tesoura e um livro "em preparo".

Grafite
Com o apoio de Alex Vallauri -famoso por grafitar pela cidade a figura enigmática da "Rainha do Frango Assado"-, Hudinilson costuma imprimir pela cidade silhuetas gregas e seu próprio retrato, ao qual chamou de Projeto Narciso. Junto com Vallauri, outros artistas usaram a cidade como suporte de obras. Walter Silveira grafitava poesias enquanto John Howard escrevia "Deus se Come-se". Por essa geração de grafiteiros passaram o grupo TupiNãoDá, Carlos Matuck e Maurício Villaça.
Fiel à "escola" de grafiteiros de São Paulo, Hudinilson anuncia sua próxima intervenção em São Paulo, programada para a semana que vem. Vai homenagear sua amiga Cláudia Wonder, que, segundo Hudinilson, foi um dos travestis mais "marcantes" da cidade. O artista deve grafitar pelas ruas de São Paulo a imagem de Wonder que, neste semestre, lança documentário sobre sua trajetória como cantora.


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