|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
A vergonha de ser pobre
Em princípio, a vergonha que
sentimos por um ou outro de
nossos atos não nos exclui da convivência social. Ao contrário, ela
nos convida a resgatar nossa dignidade com novas ações e a voltar
para o mundo de cara lavada.
Mas há uma outra vergonha,
radical, que pode nos afastar da
coletividade, sem retorno: é a vergonha de quem somos, não de algo que fizemos.
Os crimes infamantes, "hediondos", por exemplo, são atos que
jogam uma sombra sinistra e
quase definitiva sobre o réu. Nossa sociedade parece pedir, nesses
casos, uma vergonha radical, que
afete não tanto o crime quanto o
próprio "ser" do culpado. Um
protótipo, imortalizado pelo romance de Nathaniel Hawthorne,
"A Letra Escarlate", é a punição
da adúltera por uma letra inscrita em seu corpo; outro é o costume islâmico de cortar a mão de
quem rouba. Em ambos os casos,
a punição é uma marca indelével:
a vergonha não é apenas relativa
aos atos, ela é um estigma duradouro que identifica e exclui
quem errou.
Mas não é preciso procurar tão
longe: as dificuldades de qualquer
ex-presidiário que queira refazer
sua vida mostram que, mesmo na
administração ordinária de nossa justiça, uma vergonha radical
e excludente pode ser parte da punição.
Acaba de sair em livro de bolso
"Hiding from Humanity: Disgust,
Shame, and the Law"(escondendo-se da humanidade: desgosto,
vergonha e a lei), de Martha
Nussbaum, professora de ética da
faculdade de direito da Universidade de Chicago (a primeira edição é de 2004). Nussbaum mostra
que uma vergonha radical ainda
produz exclusão nas sociedades
modernas. Há a vergonha dos criminosos que pagaram sua dívida
com a sociedade, mas continuam
manchados por uma aura de infâmia, assim como há a vergonha
dos negros, das minorias sexuais,
dos incultos, dos miseráveis, dos
gordos ou dos fumantes.
A crítica de Nussbaum (que retoma um clássico da sociologia
dos anos 60, "Estigma, notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada", de Erving Goffman)
baseia-se num grande princípio
da moral moderna: nossa vida é
livremente inventada e reinventada por nossos atos, portanto,
nossos atos podem ser punidos e
envergonhados, mas nunca deve
ser envergonhada e estigmatizada nossa "essência".
Há também uma razão pragmática para criticar a vergonha
radical e excludente. James Gilligan, professor de psiquiatria da
universidade Harvard, pesquisa
os efeitos sociais da vergonha que
exclui. Um bom resumo de seu
trabalho é o artigo "Shame, Guilt,
and Violence" (vergonha, culpa e
violência), publicado num número especial sobre vergonha de "Social Research", vol. 70, nš 4, 2003
(www.findarticles.com/p/articles/
mi-m2267/is-4-70/ai-112943739).
Desde 1975, as pesquisas de Gilligan mostram que a maioria dos
atos criminosos encontram sua
motivação no sentimento de humilhação. A perda de dignidade
ameaça o sujeito com a perspectiva de uma morte mais cruel do
que a morte de seu corpo: uma
morte simbólica, que torna vergonhosa sua simples existência. Essa
vergonha radical evoca o desamparo de um recém-nascido que
não fosse acolhido no mundo por
amor algum.
Para Gilligan, a miséria, em si,
não é nunca causa da violência,
mas a coisa muda se ela for acompanhada pela exclusão social: a
vergonha de ser excluído fala
mais alto do que os freios morais.
Qualquer ato é possível na tentativa desesperada de exigir o respeito dos outros: "Se eles percebem que não têm meios não violentos de se tornarem independentes e de tomar conta de si mesmos (habilidades, educação e emprego), a atividade e a agressividade estimuladas pela vergonha
podem se manifestar em comportamentos violentos, sádicos e
mesmo homicidas".
Conseqüência: um sistema penal humilhante, que desacate a
humanidade de seus condenados,
só produz neles a necessidade de
voltar a impor respeito pela violência de seus atos.
Outra conseqüência: uma coletividade pode conviver em paz
apesar de grandes diferenças sociais e econômicas, mas à condição que ela não exclua e envergonhe uma parte de seus membros.
Ora, na semana passada, concluí minha coluna observando o
seguinte: uma "elite" insegura,
decidida a confirmar sua legitimidade ostentando e esbanjando,
transforma a pobreza do povo em
motivo de vergonha e exclusão,
ou seja, induz o povo a sentir vergonha de sua própria condição.
A conclusão fica com Yuri Lotman, o pai da ciência dos signos,
num breve ensaio, "Semiótica dos
Conceitos de Vergonha e Medo",
que me foi oportunamente lembrado por uma leitora, Ude Baldan (em português, o texto está
nos "Ensaios de Semiótica Soviética""). Lotman afirma que é possível organizar uma coletividade
ao redor do medo (medo da punição, medo dos invasores, medo da
violência etc.), mas seria uma coletividade animalesca: uma sociedade autenticamente humana é
organizada pela freio moral garantido pela vergonha.
Pois bem, quando uma "elite"
desprovida dessa vergonha exclui
e humilha o povo, a coletividade
se organiza do jeito que sobra: pelo medo da violência de seus excluídos.
@ - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Artes plásticas: Carmela Gross prepara obra que "pede passagem" Índice
|