São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008

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Livros - Crítica/"A Elegância do Ouriço"

Talentosa, francesa Muriel Barbery cria impacto como Kafka

Segundo romance de jovem autora, "A Elegância do Ouriço" recebeu boas avaliações e teve êxito comercial na França

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Na superfície, Renée Michel se molda ao clichê da "concierge" parisiense. A zeladora do palacete burguês situado no número 7 da rue de Grenelle é, como ela própria se define, "viúva, baixinha, feia, gordinha".
Seria o protótipo da concierge rabugenta e insignificante, não fosse por um detalhe, que apenas os leitores conhecem e ela se esforça por esconder. Ela é um ser refinado, que se deleita com os filmes de Yasujiro Ozu, aprecia Mozart, lê pensadores como Husserl e Marx ("para a elevação da alma") e se apraz com escritores russos, especialmente Tolstói.
Renée -protagonista deste segundo romance de Muriel Barbery- porta a "elegância do ouriço" de que fala o título: "por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza [...] dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes".
O livro obteve boas críticas e êxito comercial na França. Curiosamente, esteve na lista dos mais vendidos naquele país junto de "As Benevolentes", de Jonathan Littell (Alfaguara).
Os dois livros são relatos de personagens que devotam à humanidade desconfiança ou desprezo (o de Littell traz um oficial nazista), embora conservem um fundo de sensibilidade que se traduz por sua apreciação da arte.
A arte é, para Renée, tudo o que lhe resta; o seu refúgio do determinismo social e do destino biológico. Afina-se, desse modo, com Paloma Josse, a superdotada filha de um de seus patrões. Aos 12 anos, a menina está determinada a suicidar-se no dia de seu aniversário.
O gênio constitui-lhe um fardo. "Se a existência é um absurdo, ser brilhantemente bem-sucedido tem tanto valor quanto fracassar", raciocina. Enquanto isso, Paloma dedica-se a "apreciar o movimento do mundo para descobrir algo que seja estético suficiente para dar valor à vida".
Cada uma à sua maneira, portanto, Renée e Paloma buscam a validação estética para a existência. Mesmo a concierge, às voltas com a pergunta "para que serve a arte?", não a dissocia totalmente da vida. A resposta para as indagações das duas se dá com a introdução de um terceiro personagem, o japonês Kakuro Ozu. Delicado, diletante, alheio ao protocolo parisiense, ele descobre o refinamento de Renée e a inteligência de Paloma e dá oportunidade para que ambas manifestem suas qualidades ocultas.
Não é de hoje que a arte européia se deixa fascinar pela cultura do Oriente (basta lembrar o japonismo que influenciou os impressionistas no século 19), mas a inserção desse personagem, de forma acrítica e como uma espécie de "deus ex machina", frusta o bom andamento narrativo e das idéias.
Barbery é uma escritora talentosa e, ao modo de Kafka, sabe como criar um desenlace de impacto à sua narrativa. Quase nos faz esquecer da deficiência anterior, talvez advinda de sua inexperiência, talvez do empenho em tratar de mais coisas que sua história permite. No todo, porém, é um livro digno, de uma autora que merece nossa atenção.


A ELEGÂNCIA DO OURIÇO
Autor:
Muriel Barbery
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45 (352 págs.)
Avaliação: bom


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