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RODAPÉ LITERÁRIO
Parábolas alienígenas
Coletânea de ficção científica inclui Machado de Assis e clássicos do gênero na literatura brasileira
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
UMA COLETÂNEA de ficção
científica que coloca Machado de Assis ao lado de autores normalmente restritos ao gênero -como Gastão Cruls, André Carneiro, Jerônymo Monteiro, Rubens
Teixeira Scavone- provoca certa
estranheza.
A publicação de "O Imortal" na
antologia "Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica", organizada por Roberto de Sousa Causo,
soa como tentativa de conferir "nobreza" a uma linhagem que, como
assinala, representa "a literatura esquecida do século 20, no Brasil".
Já existem na bibliografia de Machado uma coletânea intitulada
"Contos Fantásticos", por Raymundo Magalhães Jr., e estudos sobre o
macabro em sua obra. Contudo, em
"O Imortal" (peripécias do herói que
toma um elixir indígena), o foco não
é o caráter sobrenatural da "droga
selvática", mas uma parábola sobre
a insignificância da experiência: a
única coisa que a personagem anseia, após lutar no quilombo de Palmares, participar da Revolução
Francesa e conquistar mais de 5.000
mulheres, é pôr fim à monotonia da
eternidade.
Classificar "O Imortal" como ficção científica é forçado, mas não é
improvável que Causo -autor de
importante estudo sobre o gênero,
"Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil" (ed. UFMG)- tenha
incluído Machado de Assis nesse rol
para mostrar o reverso da medalha:
se podemos ler um grande escritor
por esse viés, por que não ler ícones
da ficção científica para além do registro temático?
A estratégia funciona particularmente bem no caso de "Meu Sósia",
de Gastão Cruls, que retoma a tópica
do duplo, do desdobramento (e estranhamento) da personalidade, estabelecida por Poe, Dostoiévski e
Oscar Wilde.
"A Espingarda", de André Carneiro, também cumpre função de parábola, ao confrontar dois sobreviventes do apocalipse que se hostilizam,
numa encenação microscópica da
pulsão de morte que permeia as relações sociais. Já em "O Copo de
Cristal", de Jerônymo Monteiro, o
artefato que permite contemplar
imagens do passado parece, apesar
das referências à repressão política
no Brasil, uma pálida versão do
"Aleph" de Borges.
Lendo "Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica", percebe-se que a fronteira entre a ficção
científica e os demais gêneros literários é determinada menos pela temática do que pela intencionalidade
do texto.
Assim, Cruls e Carneiro usam a
ficção como forma de imaginar desdobramentos possíveis para o real,
ao passo que outros escritores querem maravilhar ou assombrar o leitor -algo evidente em contos como
os de Jorge Luiz Calife, Finisia Fideli e Ricardo Teixeira, nos quais viagens interplanetárias, alienígenas e
eventos cósmicos se acoplam a
questões mítico-ecológicas.
OS MELHORES CONTOS BRASILEIROS DE FICÇÃO CIENTÍFICA
Organizador: Roberto de Sousa Causo
Editora: Devir
Quanto: R$ 24,50 (200 págs.)
Avaliação: bom
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