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ANTONIO CICERO
Capitalismo e ideologia
Não se pode superar o capitalismo antes de garantir o direito a livre expressão e autonomia
NO MEU último artigo, chamei
atenção para uma curiosa
analogia entre o feudalismo
e o "socialismo real", tal como este
existiu, por exemplo, na União Soviética. No modo de produção feudal, era fundamental para o próprio
funcionamento da economia que
uma única ideologia, isto é, o catolicismo, fosse compartilhada por praticamente toda a sociedade.
Por isso, as ideologias desviantes
ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir,
estabelecer, divulgar e impor essa
religião era, como se sabe, a Igreja.
Ora, também no modo de produção socialista, era fundamental para
o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é,
o marxismo-leninismo, também
acabasse por ser adotada por praticamente toda a sociedade.
Por isso, as ideologias desviantes
ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir,
estabelecer, divulgar e impor essa
verdadeira religião laica era, como
se sabe, o Partido Comunista, por
meio do Estado, que monopolizava
todas as instituições de ensino e de
propaganda.
Observei também que o modo de
produção capitalista, ao contrário, é
capaz de funcionar sem necessidade
de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior
parte da sociedade. Sendo assim, ele
é perfeitamente compatível com a
liberdade de expressão, inclusive a
liberdade de imprensa.
Pois bem, essas simples constatações -sobretudo a última- provocaram vários leitores a enviarem
mensagens indignadas, principalmente ao meu e-mail e ao meu blog.
Entretanto, todas me acusam de ter
dito coisas que eu não disse. A indignação é, sem dúvida, pelo que eu
realmente escrevi e, sem dúvida,
exatamente pelo fato de ser incontestável; mas, já que não conseguiam contestá-lo, os ataques dos
insatisfeitos se concentraram no
que não escrevi nem penso. É o que
se chama má-fé.
Acusaram-me, por exemplo, de
ter dito que não há ideologia capitalista ou burguesa. Ora, penso, ao
contrário, que há inúmeras ideologias burguesas. O que afirmei foi que
nenhuma ideologia particular tem
que ser compartilhada pela maior
parte da sociedade para que a economia capitalista funcione.
Trata-se de algo evidente, que é
suscetível de ser empiricamente verificado em inúmeros países capitalistas, inclusive no Brasil. Quem poderia negar que o Brasil (ou os Estados Unidos, ou a França...) é um país
capitalista? Quem poderia negar
que há, no Brasil (ou nesses outros
países), liberdade de expressão?
Essa característica do capitalismo
pode ser explicada pelo fato de que
as motivações que orientam as
ações dos seus agentes econômicos
-em particular, dos capitalistas
(por exemplo, o lucro e a ampliação
do capital) e dos operários (por
exemplo, o salário)- são basicamente materiais, pouco importando
ao funcionamento da economia que
cada indivíduo tenha ideologias, filosofias, religiões, superstições, gostos, hábitos, vícios etc. diferentes de
cada um dos outros indivíduos.
Segundo a famosa fórmula da "Fábula das Abelhas", de Mandeville
(século 18), vícios privados (por
exemplo, a cobiça) são capazes de
produzir virtudes públicas (por
exemplo, a prosperidade nacional).
É evidente que tal modo de pensar
jamais poderia funcionar numa economia socialista planejada, em que,
tendo em vista a "construção do socialismo (ou do comunismo)", torna-se necessário exaltar a virtude do
altruísmo e a submissão do interesse individual ao coletivo.
Que admira, se, em tal situação,
quem pensar por conta própria já
esteja incorrendo no desvio do "individualismo pequeno-burguês"?
Para evitá-lo, torna-se necessária a
"reeducação" de todos segundo um
único modelo: para isso, apela-se,
por exemplo, às chamadas "revoluções culturais".
Lin Piao, um dos líderes da Revolução Cultural Chinesa, explicava
que ela tinha como meta "eliminar a
ideologia burguesa, estabelecer a
ideologia proletária, remodelar as
almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista". É o totalitarismo
em estado puro.
Estou longe de achar o capitalismo perfeito. Mas não se pode tentar
superar os seus problemas sem, ao
mesmo tempo, preservar, ampliar,
universalizar e consolidar a sociedade aberta, o direito à livre expressão
de pensamento, a maximização da
liberdade individual, a autonomia
da ciência, a autonomia da arte etc.
Vimos que o marxismo-leninismo é,
em princípio e de fato, incompatível
com essa exigência. Resta-nos ser
radicalmente reformistas.
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