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CRÍTICA
Filme é 'road movie', documento social e fábula ética
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
É difícil sair de olhos enxutos de
uma sessão de "Central do Brasil".
Como costuma acontecer com
os grandes filmes, o longa-metragem de Walter Salles é várias coisas ao mesmo tempo: melodrama
rasgado, documento social, parábola de ressonâncias bíblicas. Por
um lado ou por outro, acaba capturando o espectador.
Muitas viagens são contadas
nesse "road movie". No plano literal, quem viaja é um menino pobre, Josué (Vinícius de Oliveira),
em busca do pai, a quem nunca
viu.
Acompanha-o a velha escrevedora de cartas alheias Dora (Fernanda Montenegro). Se para Josué
a viagem significa um doloroso rito de passagem, também para Dora ela adquire o sentido de uma
jornada moral, da indiferença ao
afeto, do olímpico ao humano.
Viaja-se ao centro de um Brasil
profundo e arcaico, mas também
ao coração do homem contemporâneo, que hesita entre o egoísmo
e a solidariedade.
Com os olhos voltados para o pai
ausente (o pai de Josué, o Padre
Cícero, Deus), os personagens de
"Central do Brasil" acabam descobrindo por vias tortas o valor da
fraternidade.
O timbre cristão da parábola é
reforçado por insistentes signos
bíblicos (a começar pelos nomes
de personagens: Josué, Jesus,
Isaías, Moisés), pelo martírio dos
protagonistas e pelo recurso ao
acervo da religiosidade popular:
romarias, santos, procissões.
O mérito maior de Walter Salles
é manter o firme controle das linhas de força que põe em ação,
equilibrando de modo notável documento e fabulação.
Nesse sentido, "Central do Brasil" fala ainda de outra viagem: a
do próprio diretor em direção a
um cinema mais consistente e menos afetado do que o que marcou
o início de sua obra.
Seus filmes anteriores, "A Grande Arte" e "Terra Estrangeira",
tratavam também de personagens
que, depois de uma série de provações, descobrem a afetividade.
Mas em ambos o drama era esvaziado ou falseado por uma certa
afetação estética -ainda que haja
muito mais substância dramática
em "Terra Estrangeira" que em "A
Grande Arte", a mostrar que a
evolução de Walter Salles já estava
em curso. Talvez não tenha sido à
toa que o cineasta resolveu abolir
o "Jr." que acompanhava seu nome.
O velho e o novo
Em "Central do Brasil", nada é
gratuito ou afetado. Tudo contribui para adensar a rede de significados do filme.
Veja-se, por exemplo (já que é
impossível falar de tudo), a escolha dos atores.
Os protagonistas são a maior
atriz do país e um menino que até
outro dia era engraxate. Já essa escolha aponta para a idéia de vários
diálogos: do velho com o novo, da
tradição com o aqui e agora, da arte com a vida.
A escalação de Marília Pêra como a amiga de Dora, Irene, remete
imediatamente à personagem da
prostituta que a atriz interpretou
em "Pixote", de Hector Babenco.
(Há, subterraneamente, outra conexão entre os dois filmes: Fátima
Toledo, que treinou os atores mirins de "Pixote", preparou também Vinícius de Oliveira).
Do mesmo modo, Othon Bastos,
como o angelical caminhoneiro
que vem de Vitória da Conquista
(terra de Glauber Rocha), traz à
lembrança seu antípoda, Corisco,
desempenhado pelo ator em
"Deus e o Diabo na Terra do Sol".
Essas opções indicam que, desta
vez, Walter Salles está mais interessado em dialogar com a tradição do cinema brasileiro do que
com a moda estrangeira do momento.
O roteiro (de João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein) é engenhoso. A fotografia (de Walter
Carvalho) e a direção de arte (de
Cássio Amarante e Carla Caffé)
desenham uma sutil jornada em
direção à clareza e ao despojamento. Só a música soa um tanto melosa e excessiva, sobretudo no início.
Há quem considere gratuita a cena da execução de um pequeno
marginal, nas imediações da estação Central do Brasil.
Mas ela é importante para traçar
o perfil do segurança Pedrão (Otávio Augusto), que concentra em si
a insanidade do Brasil de hoje, para o qual a propriedade importa
mais que a vida humana.
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