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MÚSICA/ANÁLISE
Guerra de sexos entre tigrões e cachorras move o "funk"
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Parece incrível, mas quem
está entendendo horrores sobre a moda funk é a Rede Globo.
Sua gravadora, a Som Livre, está
lançando a série de coletâneas
"Explosão Tekno Funk", que dá à
coisa um nome um pouco menos
impróprio que só "funk".
Talvez seja por aí, se é que o velho e glorioso funk -território do
black power e da emancipação
negra, de George Clinton e de Sly
Stone- terá mesmo de suportar
o ônus desse bem mais que longínquo parentesco.
É que a via de chegada do "novo" gênero ao Rio passou pelos
sons sintetizados do tal "miami
bass" -e da ultrakitsch Miami
em si-; hip hop, house e "poperôs" também estão na rodovia de
acesso. O resultado? Tekno funk.
Unindo os paus da canoa, pode-se chafurdar por trilhas insuspeitas, que moralistas horrorizados
preferem ignorar para bater martelos peremptórios em falta de
identidade, machismo, pornografia, dissolução familiar, blablablá.
Quer ver? Pegue o tekno funk
"Danada", de... de quem mesmo?
(Aqui autoria é conceito já esfacelado, ao limite de CDs de indústria virem com autorias creditadas aos "DJs da Pipo's", só.)
A melodia de "Danada" é, tal e
qual, a de "In Love with Love"
(86), da loira Debbie Harry, deusa
que encabeçou o lado mais luminoso da cena punk/new wave
norte-americana de 76 em diante,
com sua banda Blondie. Maluquice? Nem tanto. Debbie, falsa loira,
ex-groupie do cortejo pop art de
Andy Warhol e ex-coelhinha da
"Playboy", nasceu em Miami, onde é até hoje cultuada como inquestionável. Talvez seja mesmo.
De frente para as mães loiras, estão os tigrões. Nos CDs de camelô
(onde o tekno funk fluía de longa
data), um negro de voz fanha e
desafinada canta "Danada", paquerando miss Debbie sem saber
("vem, potranca, vem/ rebole então/ balance o seu popozão").
A ponta oposta vem do tekno
funk de sexismo no feminino
"Kawasaki", cantado em tétrica
dicção por uma das mestres de cerimônia meninas da hora, a MC
Vanessinha ou outra (já não se sabe ao certo quem canta o quê).
A melodia é a mesma de "Engenho de Dentro" (93), do funkeiro
brasileiro de primeira geração
Jorge Ben Jor, a letra trocada para
"pode "vim", meu bem/ de Kawasaki e dinheiro no bolso". Pronto,
a loirinha deu o troco no tigrão.
Aí está o xis da questão, mais até
que se funk é pancadão, tekno ou
"de raiz". Instala-se no seio do
pop uma talvez inédita guerra de
sexos. Como sempre, rapazes espirram ranço sexista ancestral sobre tchutchucas, popozudas e pepitudas; mas agora elas respondem com igual virulência.
"Dança da motinha/ as popozudas "perde" a linha", canta MC
Beth (ou a MC Bela?, pois dizem
que elas dividem as mesmas músicas), admitindo às claras que
quer a grana dos caras.
Outra, a da Kawasaki, vai além:
"Se "liga", meus amigos/ eu não
sou mercenária/ só não aguento
mais/ essa situação precária/ não
quero acabar/ com um cara ferrado/ limpando o chão/ lavando pilhas de prato/ eu quero é ir pro
"shópi'/ o resto é que se dane".
"Dancei na motinha/ a minha
moto foi roubada", já se apressa a
responder, na mesma melodia, o
tigrão Mr. Catra. Esse sim funkeiro em potencial e negro de voz
trovejante à moda Gerson King
Combo, ele ataca forte, no funk
sem aspas "Mercenária": "Ela é
sanguessuga/ tá pronta pra te dar
um bote (...)/ tá de olho no seu
malote". A guerra esquenta.
Retruca Vanessinha, esganiçada (e autêntica) como o demo e tirando sarro do marmanjo: "Me
chama pra sair/ olha que decepção/ me leva pro cinema/ pra assistir o "Pokémon'/ se liga no papo
reto/ que eu vou mandar "pa" tu/
eu quero é ir pro hotel/ "pa" brincar com o Pikatchu". Uhu.
OK, os argumentos (musicais
inclusive) são grosseiros de ambos os lados, mas não venha dizer
que tudo continua igual (embora
a indústria corra para fazer tudo
igual: a Warner acaba de lançar
Mr. Catra, o Tigrão é da Sony, os
SD Boyz foram descaracterizados
pela Abril; enquanto isso, as "minas" continuam sem megafone,
brigando com os "machões" do
lado de fora do cercado).
Não à toa, o cartunista Laerte
exprimiu em tirinha de domingo
sua visão: a popozuda (sempre
ela, que o tigrão "tá" liberado) é
conduzida à fogueira por querer
tapinha, e Deus joga chuvarada
no Brasil para apaziguar os ânimos. Bem mais perverso que o
tekno funk é o moralismo. E o governo FHC -ex-reino do axé hoje prensado entre ACM e Jader-
tem nova e feia trilha sonora.
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