São Paulo, sexta-feira, 23 de março de 2001

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MÚSICA/ANÁLISE

Guerra de sexos entre tigrões e cachorras move o "funk"

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Parece incrível, mas quem está entendendo horrores sobre a moda funk é a Rede Globo. Sua gravadora, a Som Livre, está lançando a série de coletâneas "Explosão Tekno Funk", que dá à coisa um nome um pouco menos impróprio que só "funk".
Talvez seja por aí, se é que o velho e glorioso funk -território do black power e da emancipação negra, de George Clinton e de Sly Stone- terá mesmo de suportar o ônus desse bem mais que longínquo parentesco.
É que a via de chegada do "novo" gênero ao Rio passou pelos sons sintetizados do tal "miami bass" -e da ultrakitsch Miami em si-; hip hop, house e "poperôs" também estão na rodovia de acesso. O resultado? Tekno funk.
Unindo os paus da canoa, pode-se chafurdar por trilhas insuspeitas, que moralistas horrorizados preferem ignorar para bater martelos peremptórios em falta de identidade, machismo, pornografia, dissolução familiar, blablablá.
Quer ver? Pegue o tekno funk "Danada", de... de quem mesmo? (Aqui autoria é conceito já esfacelado, ao limite de CDs de indústria virem com autorias creditadas aos "DJs da Pipo's", só.)
A melodia de "Danada" é, tal e qual, a de "In Love with Love" (86), da loira Debbie Harry, deusa que encabeçou o lado mais luminoso da cena punk/new wave norte-americana de 76 em diante, com sua banda Blondie. Maluquice? Nem tanto. Debbie, falsa loira, ex-groupie do cortejo pop art de Andy Warhol e ex-coelhinha da "Playboy", nasceu em Miami, onde é até hoje cultuada como inquestionável. Talvez seja mesmo.
De frente para as mães loiras, estão os tigrões. Nos CDs de camelô (onde o tekno funk fluía de longa data), um negro de voz fanha e desafinada canta "Danada", paquerando miss Debbie sem saber ("vem, potranca, vem/ rebole então/ balance o seu popozão").
A ponta oposta vem do tekno funk de sexismo no feminino "Kawasaki", cantado em tétrica dicção por uma das mestres de cerimônia meninas da hora, a MC Vanessinha ou outra (já não se sabe ao certo quem canta o quê).
A melodia é a mesma de "Engenho de Dentro" (93), do funkeiro brasileiro de primeira geração Jorge Ben Jor, a letra trocada para "pode "vim", meu bem/ de Kawasaki e dinheiro no bolso". Pronto, a loirinha deu o troco no tigrão.
Aí está o xis da questão, mais até que se funk é pancadão, tekno ou "de raiz". Instala-se no seio do pop uma talvez inédita guerra de sexos. Como sempre, rapazes espirram ranço sexista ancestral sobre tchutchucas, popozudas e pepitudas; mas agora elas respondem com igual virulência.
"Dança da motinha/ as popozudas "perde" a linha", canta MC Beth (ou a MC Bela?, pois dizem que elas dividem as mesmas músicas), admitindo às claras que quer a grana dos caras.
Outra, a da Kawasaki, vai além: "Se "liga", meus amigos/ eu não sou mercenária/ só não aguento mais/ essa situação precária/ não quero acabar/ com um cara ferrado/ limpando o chão/ lavando pilhas de prato/ eu quero é ir pro "shópi'/ o resto é que se dane".
"Dancei na motinha/ a minha moto foi roubada", já se apressa a responder, na mesma melodia, o tigrão Mr. Catra. Esse sim funkeiro em potencial e negro de voz trovejante à moda Gerson King Combo, ele ataca forte, no funk sem aspas "Mercenária": "Ela é sanguessuga/ tá pronta pra te dar um bote (...)/ tá de olho no seu malote". A guerra esquenta.
Retruca Vanessinha, esganiçada (e autêntica) como o demo e tirando sarro do marmanjo: "Me chama pra sair/ olha que decepção/ me leva pro cinema/ pra assistir o "Pokémon'/ se liga no papo reto/ que eu vou mandar "pa" tu/ eu quero é ir pro hotel/ "pa" brincar com o Pikatchu". Uhu.
OK, os argumentos (musicais inclusive) são grosseiros de ambos os lados, mas não venha dizer que tudo continua igual (embora a indústria corra para fazer tudo igual: a Warner acaba de lançar Mr. Catra, o Tigrão é da Sony, os SD Boyz foram descaracterizados pela Abril; enquanto isso, as "minas" continuam sem megafone, brigando com os "machões" do lado de fora do cercado).
Não à toa, o cartunista Laerte exprimiu em tirinha de domingo sua visão: a popozuda (sempre ela, que o tigrão "tá" liberado) é conduzida à fogueira por querer tapinha, e Deus joga chuvarada no Brasil para apaziguar os ânimos. Bem mais perverso que o tekno funk é o moralismo. E o governo FHC -ex-reino do axé hoje prensado entre ACM e Jader- tem nova e feia trilha sonora.



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