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GASTRONOMIA
Nova York de A a AZ
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
A sequência é cinematográfica. No meio da quadra de
uma rua calma, entre a 5ª e a 6ª
avenidas, há um portãozinho de
ferro que dá para uma escadinha
de pedra branca, como são brancas quase todas as casas ali, em
charmoso falso estilo georgiano.
Cabeças de pedra, de boca aberta,
servem de falsas gárgulas, separando as janelas. No canto, talhado na pedra, o nome discreto:
Aquavit.
Recepcionistas, vestidos como
diplomatas, vão levá-lo do primeiro bar, no subsolo, ao segundo, mais embaixo, ao fundo do
qual se abre um espantoso salão:
pé-direito altíssimo, cascata d'água correndo na laje preta, quatro
cálices enormes em nichos iluminados como um cenário de ópera
minimalista. Garçons de ópera.
Vozes baixas, tempo zen, você
transportado ao melhor de si pelo
mero efeito do ambiente. E nem
começaram ainda as artes do chef
Marcus Samuelsson.
Biografia de filme: órfão aos três
anos, o menino etíope foi adotado
por um casal de missionários suecos. Cresceu na Escandinávia, fez
escola de culinária e foi para Nova
York abrir o Aquavit em 1995. De
lá para cá, já foi convidado para
fazer livros e programas de TV.
Recusou tudo, porque "ainda é
cedo". Gastronomia, para quem
cozinha assim, é uma disciplina
do espírito. À qual se responde
com uma nova disciplina do corpo, que ele nos ensina da primeira
garfada até a distante última.
Aqui não é lugar para se pensar
em detalhes desagradáveis, como
a disparidade entre o real e o dólar. Vá em frente e peça o menu
gastronômico, acompanhado da
degustação de vinhos e acquavits
(nove cálices ao longo do jantar).
Desde os acepipes de entrada
-talharim transparente de salmão, delicadíssimos cubos gelados de pepino-, você está sendo
levado aonde nunca foi. Neste
planeta, existem coisas como sardinhas perfeitas, cobertas por um
perfeito fio de caviar; salada de
polvo com salsão e um molho de
tomate metafisicamente livre de
acidez; sea bass (perca do mar)
com quadradinhos de bacon sobre purê de mexilhões. Pratos lindos, que, sem muito favor, poderiam ser expostos no Museu de
Arte Moderna (MoMA), vizinho
de fundos do restaurante.
Do foie gras, não há o que dizer.
Ou melhor, não há como dizer,
porque ainda não foram inventadas as palavras para descrever essa textura. O melhor sorvete de
pistache que você já comeu fecha
o banquete dos sentidos, acompanhado do melhor petit gâteau de
chocolate. E -previsibiliade única neste festival de surpresas-
uma última dose de aquavit.
Descrever tudo isso como "culinária escandinava moderna" não
estaria errado, mas seria tão insuficiente como dizer que Mozart
era um compositor clássico, ou o
São Paulo, um time de futebol. Seria reduzir uma experiência única
a uma abstração sem vida. Um
jantar no Aquavit é um jantar no
Aquavit.
E esta frase pode ser compreendida no limite: cada jantar, neste
nível de elaboração, será sempre
outro jantar. O que nos dá um
misto de felicidade (existe, em tese, no futuro, a possibilidade de
uma nova visita) e melancolia (o
número de jantares necessariamente é limitado). Águas da vida.
Da Escandinávia à Ásia
Do outro lado do mundo (isto é,
abaixo da rua 42), uma outra artista trabalha suas obras, incrivelmente diferentes, mas incrivelmente com alguns dos mesmos
materiais: salmão, perca, foie
gras. O AZ está para a nova comida asiática como o Aquavit para a
nórdica; e Patricia Yeo, como Samuelsson, inventa uma gastronomia própria a partir de sugestões
comuns.
É um outro filme. Rua escura do
Flatiron District. Porta estreita,
recepcionista ultracool, que confere a reserva sempre com um leve ar de incredulidade e que o fará
esperar obrigatoriamente no bar,
até que a sua mesa esteja pronta.
Música idiota, numa altura estúpida. Descolados esparramados
nos sofás. Não se assuste. Tudo
muda a partir do momento em
que você toma o elevador (aço, vidro, luz azul) para subir ao palácio neochinês, ou neotailandês,
ou que nome for para essa amplidão de mesas escuras, cascata de
três andares, luminárias paródicas, teto solar e armários imperturbáveis.
A cozinha do AZ não é só poliestilística, mas contrapontística.
Os elementos se transformam pela combinação. Será possível que
isso seja mesmo... atum? Justaposto à rabada, o peixe muda de
caráter. E o que faz essa lâmina semitransparente de pâtisserie no
meio? A mediação entre texturas.
Perdiz laqueada com gengibre,
foie gras com morangos cobertos
de pimenta preta. Um leque de
costeletas de porco cozido no Armagnac e acompanhado de ameixas maceradas em chá. Falando
em chá, o prato mais popular da
casa é o frango defumado ao chá
Lapsang souchong. E o que se bebe com isso? O maître sugere um
ótimo riesling californiano (apesar do nome suspeito: Evolution).
Na mesa poliétnica ao lado, dois
rapazes cheios de estilo entretêm
três lindas moças. Um Cadillac
preto os espera lá fora. Casais e
quartetos, de pouca, meia-idade
ou idade inteira, blasés e apaixonados, ficam todos suspensos
neste paraíso artificial, onde se
abrem as portas da percepção
sem substância ilícita alguma.
Peixe, carne, massa, legumes,
tempero. Só isso. Mais o gênio e o
esmero de ms. Yeo.
Comer em Nova York
Comer em Nova York vale a viagem. Para quem tiver um pouco
de iniciativa, estiver disposto a
aventuras e se der uns dias de
abandono crediário, a cidade não
tem igual. De A a Z (ou do Aquavit ao AZ), há um alfabeto inteiro
para ser percorrido, entre retornos e descobertas.
E o mais impressionante nem é
isso. É que comer, afinal, não é tudo. Não é tudo? Não é quase nada.
Dê uma olhada na lista de concertos no jornal.
Aquavit
Endereço: 13 West 54th St.
Telefone: 00/xx/1/212/307/7311
Quanto: menu-degustação, US$ 85 +
US$ 35 (vinhos); almoço, US$ 35
AZ
Endereço: 21 West 17th St.
Telefone: 00/xx/1/212/691-8888
Quanto: menu-degustação, US$ 57, sem
bebidas; cardápio pré-espetáculo, US$
36
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