São Paulo, sexta-feira, 23 de março de 2001

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GASTRONOMIA

Nova York de A a AZ

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A sequência é cinematográfica. No meio da quadra de uma rua calma, entre a 5ª e a 6ª avenidas, há um portãozinho de ferro que dá para uma escadinha de pedra branca, como são brancas quase todas as casas ali, em charmoso falso estilo georgiano. Cabeças de pedra, de boca aberta, servem de falsas gárgulas, separando as janelas. No canto, talhado na pedra, o nome discreto: Aquavit.
Recepcionistas, vestidos como diplomatas, vão levá-lo do primeiro bar, no subsolo, ao segundo, mais embaixo, ao fundo do qual se abre um espantoso salão: pé-direito altíssimo, cascata d'água correndo na laje preta, quatro cálices enormes em nichos iluminados como um cenário de ópera minimalista. Garçons de ópera. Vozes baixas, tempo zen, você transportado ao melhor de si pelo mero efeito do ambiente. E nem começaram ainda as artes do chef Marcus Samuelsson.
Biografia de filme: órfão aos três anos, o menino etíope foi adotado por um casal de missionários suecos. Cresceu na Escandinávia, fez escola de culinária e foi para Nova York abrir o Aquavit em 1995. De lá para cá, já foi convidado para fazer livros e programas de TV. Recusou tudo, porque "ainda é cedo". Gastronomia, para quem cozinha assim, é uma disciplina do espírito. À qual se responde com uma nova disciplina do corpo, que ele nos ensina da primeira garfada até a distante última.
Aqui não é lugar para se pensar em detalhes desagradáveis, como a disparidade entre o real e o dólar. Vá em frente e peça o menu gastronômico, acompanhado da degustação de vinhos e acquavits (nove cálices ao longo do jantar).
Desde os acepipes de entrada -talharim transparente de salmão, delicadíssimos cubos gelados de pepino-, você está sendo levado aonde nunca foi. Neste planeta, existem coisas como sardinhas perfeitas, cobertas por um perfeito fio de caviar; salada de polvo com salsão e um molho de tomate metafisicamente livre de acidez; sea bass (perca do mar) com quadradinhos de bacon sobre purê de mexilhões. Pratos lindos, que, sem muito favor, poderiam ser expostos no Museu de Arte Moderna (MoMA), vizinho de fundos do restaurante.
Do foie gras, não há o que dizer. Ou melhor, não há como dizer, porque ainda não foram inventadas as palavras para descrever essa textura. O melhor sorvete de pistache que você já comeu fecha o banquete dos sentidos, acompanhado do melhor petit gâteau de chocolate. E -previsibiliade única neste festival de surpresas- uma última dose de aquavit.
Descrever tudo isso como "culinária escandinava moderna" não estaria errado, mas seria tão insuficiente como dizer que Mozart era um compositor clássico, ou o São Paulo, um time de futebol. Seria reduzir uma experiência única a uma abstração sem vida. Um jantar no Aquavit é um jantar no Aquavit.
E esta frase pode ser compreendida no limite: cada jantar, neste nível de elaboração, será sempre outro jantar. O que nos dá um misto de felicidade (existe, em tese, no futuro, a possibilidade de uma nova visita) e melancolia (o número de jantares necessariamente é limitado). Águas da vida.

Da Escandinávia à Ásia
Do outro lado do mundo (isto é, abaixo da rua 42), uma outra artista trabalha suas obras, incrivelmente diferentes, mas incrivelmente com alguns dos mesmos materiais: salmão, perca, foie gras. O AZ está para a nova comida asiática como o Aquavit para a nórdica; e Patricia Yeo, como Samuelsson, inventa uma gastronomia própria a partir de sugestões comuns.
É um outro filme. Rua escura do Flatiron District. Porta estreita, recepcionista ultracool, que confere a reserva sempre com um leve ar de incredulidade e que o fará esperar obrigatoriamente no bar, até que a sua mesa esteja pronta. Música idiota, numa altura estúpida. Descolados esparramados nos sofás. Não se assuste. Tudo muda a partir do momento em que você toma o elevador (aço, vidro, luz azul) para subir ao palácio neochinês, ou neotailandês, ou que nome for para essa amplidão de mesas escuras, cascata de três andares, luminárias paródicas, teto solar e armários imperturbáveis.
A cozinha do AZ não é só poliestilística, mas contrapontística. Os elementos se transformam pela combinação. Será possível que isso seja mesmo... atum? Justaposto à rabada, o peixe muda de caráter. E o que faz essa lâmina semitransparente de pâtisserie no meio? A mediação entre texturas.
Perdiz laqueada com gengibre, foie gras com morangos cobertos de pimenta preta. Um leque de costeletas de porco cozido no Armagnac e acompanhado de ameixas maceradas em chá. Falando em chá, o prato mais popular da casa é o frango defumado ao chá Lapsang souchong. E o que se bebe com isso? O maître sugere um ótimo riesling californiano (apesar do nome suspeito: Evolution).
Na mesa poliétnica ao lado, dois rapazes cheios de estilo entretêm três lindas moças. Um Cadillac preto os espera lá fora. Casais e quartetos, de pouca, meia-idade ou idade inteira, blasés e apaixonados, ficam todos suspensos neste paraíso artificial, onde se abrem as portas da percepção sem substância ilícita alguma. Peixe, carne, massa, legumes, tempero. Só isso. Mais o gênio e o esmero de ms. Yeo.

Comer em Nova York
Comer em Nova York vale a viagem. Para quem tiver um pouco de iniciativa, estiver disposto a aventuras e se der uns dias de abandono crediário, a cidade não tem igual. De A a Z (ou do Aquavit ao AZ), há um alfabeto inteiro para ser percorrido, entre retornos e descobertas.
E o mais impressionante nem é isso. É que comer, afinal, não é tudo. Não é tudo? Não é quase nada. Dê uma olhada na lista de concertos no jornal.



Aquavit
    
Endereço: 13 West 54th St.

Telefone: 00/xx/1/212/307/7311
Quanto: menu-degustação, US$ 85 + US$ 35 (vinhos); almoço, US$ 35 AZ

   
Endereço: 21 West 17th St. Telefone: 00/xx/1/212/691-8888 Quanto: menu-degustação, US$ 57, sem bebidas; cardápio pré-espetáculo, US$ 36




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