São Paulo, sexta-feira, 23 de março de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Dos banhos, das maçãs e dos burros que voam

T omo banho todos os dias. Aliás, acredito que todo mundo faz o mesmo, com exceção dos franceses. Já tomei banho de bacia, quando era infante, banho de banheira, de chuveiro, de piscina, de jacuzzi, de cachoeira, de temporal. Acredito que não há uma modalidade de banho que não tenha experimentado, por necessidade ou curiosidade.
No entanto, um grego foi tomar banho e saiu nu, gritando pelas ruas, "Eureka! Eureka!". Reza a lenda que se chamava Arquimedes, ou Archimedes pela antiga ortografia, que era mais complicada, em compensação, era mais pitoresca. Tinha um visual mais forte: amphora e Nictheroy são palavras mágicas. E shyphilis era mais letal do que a sífilis.
O fato é que Arquimedes, que provavelmente tomava banho todos os dias, saiu gritando pelas ruas de Atenas, não tenho certeza, acho que era de Atenas, "Eureka! Eureka!". Tinha acabado de descobrir por que os navios flutuavam e como ele próprio flutuava dentro da banheira.
Tive um colega que foi tomar banho na casa de férias que o seminário do Rio mantinha em Itaipava. Viu um sapo enorme, escuro e obeso, saindo do ralo que estava sem a grade. Nu, ensaboado, nem abriu a porta onde pendurara a toalha. Arrebentou a porta e esqueceu de se enrolar na toalha. Saiu nu, nu e ensaboado, gritando: um sapo! um sapo!
Não descobriu nada. Seu feito teria sido esquecido não fosse esta crônica, e não haveria memória de sua façanha. Mas, sempre que penso nisso, desconfio que ele perdeu boa oportunidade para entrar na história universal extraindo de seu pavor pelo sapo uma dessas leis que fazem o mundo flutuar no espaço.
Por coincidência, esse colega não se chamava Arquimedes, mas tinha um nome grego, chamava-se Alcebíades, era de Barra do Piraí e, além dos sapos, tinha pavor pelo latim, foi expulso do seminário não pelo fato de ter saído nu do banheiro mas também por terminar o primeiro ano sem saber declinar o ""rosa, rosae".
Pulando alguns séculos, tivemos o caso de Newton, que deveria ser Nilton, mas, por respeito a seu extraordinário feito, mereceu ficar como Newton, da mesma forma que a Bahia ficou com o agá e o Piauhy perdeu simultaneamente o agá e o ipisilone. Reza a lenda, mais uma vez, que Newton foi dormir embaixo da macieira. Caiu-lhe a maçã na cara e ele descobriu a lei da gravidade. Criou todo um sistema que vigorou até Einstein. Não sou doutor em física, mas acho que Newton ainda vai ter razão. Nunca entendi a lei da relatividade, mas entendo perfeitamente porque as coisas costumam cair em cima da gente.
Bem verdade que maçã alguma caiu em cima de mim. Creio que nunca passei perto de qualquer macieira. Aqui no Rio não temos macieiras, temos bananeiras, mangueiras -que deram nome a uma escola de samba- e algumas laranjeiras -que deram nome a um bairro. Nos fatos cariocas não há qualquer referência a macieiras. Se Newton vivesse aqui, provavelmente até hoje nada saberíamos sobre a queda das maçãs.
Tampouco sobre a queda do homem no Paraíso Terrestre, onde a maçã entrou pela primeira vez na história. Tratou-se de uma queda mais transcendental, que não explicou a lei da gravidade, mas explicou porque as mulheres sentem dores na hora do parto e porque os homens suam quando trabalham. Foram as principais consequências da queda do homem: a mulher parindo com dor e o homem suando pelo pão de cada dia.
Devemos alguma coisa às maçãs e ao banho de Arquimedes. Todos os dias acontecem coisas maravilhosas e não explicáveis com todo mundo, e continuamos ignorando porque amamos e deixamos de amar, porque sentimos saudades de umas coisas e esquecemos outras, porque perdemos tempo e lágrimas pelo leite derramado, porque é mais fácil um burro voar do que a Esquina da Sorte falhar.
Reza a lenda (uso a expressão pela terceira vez) que são Tomás de Aquino estava no recreio e uns colegas, ressentidos com a sabedoria dele, apontaram para o céu e avisaram: "Olha, Tomás, um burro voando!". São Tomás olhou para cima, procurando no céu o burro que voava. Os colegas caíram em cima dele: ""Você, que está escrevendo a Suma Teológica, acredita que um burro possa voar?" São Tomás respondeu: ""Deveria ser mais fácil um burro voar do que um religioso mentir". Sem saber, o Doutor Angélico estava criando o slogan radiofônico que fez sucesso nos anos 30, quando a Esquina da Sorte tinha a fama de vender bilhetes premiados da Loteria Federal.
Arquimedes, Newton e Tomás de Aquino entraram na história por causa do banho, da maçã e do burro voando. Coisas naturais ou sobrenaturais que fizeram a humanidade progredir, explicando porque os navios flutuam, porque as maçãs caem e porque os burros não podem voar, mas os religiosos podem mentir.
Medito humildemente sobre a minha insignificância, não consegui entender nada do que acontece comigo nem nos banhos que tomei da vida em geral nem das quedas que tive -e foram muitas.
Só não vi mesmo foi burro voando. Mas vi burros fazendo coisas espantosas, como escrever crônicas estúpidas como esta.


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