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DRAUZIO VARELLA
Raízes biológicas da violência
Há indivíduos com
maior probabilidade de desenvolver comportamento violento. No último artigo publicado
nesta coluna, dissemos que os
principais fatores envolvidos na
formação de personalidades com
inclinação para a violência são:
1) durante a infância ter apanhado ou ter sido vítima de abuso
sexual, assim como ter sofrido humilhações ou desprezo nos primeiros anos de vida;
2) ter vivido a adolescência em
família que não lhe tenha transmitido valores altruísticos ou formação moral nem lhe tenha imposto limites de disciplina;
3) ter-se associado a grupos de
jovens portadores de comportamento anit-social.
No número de março da revista
"Scientific American", Martin
Teicher, neurocientista da Universidade Harvard, descreve as
descobertas científicas que dão
suporte às afirmações acima.
Até o início dos anos 1990, psicólogos e psiquiatras acreditavam
que dificuldades sociais e maus-tratos sofridos na infância pudessem estimular mecanismos de auto-defesa que impediriam o desenvolvimento psicológico pleno.
As alterações comportamentais
resultantes seriam, então, passíveis de reprogramação através de
tratamento psicoterápico. A psicoterapia teria o dom de convencer os pacientes a simplesmente
"passar por cima" desses traumas
do passado.
Os avanços da neurociência
ocorridos na década passada contestaram essa visão de que os
traumas afetariam apenas o
"software" cerebral. As evidências
apontaram para a existência de
problemas mais sérios na configuração do "hardware", responsáveis por modificações na estrutura das conexões entre os neurônios, nos circuitos cerebrais.
O cérebro dos bebês não nasce
com todos os circuitos já conectados, prontos para enfrentar a vida
adulta. Ao contrário, a característica mais importante do sistema
nervoso é sua plasticidade, isto é,
a capacidade que os neurônios
têm de estabelecer conexões moldadas pela experiência. Se taparmos um dos olhos de um recém-nascido durante um mês, ele perderá a visão desse olho, embora
enxergue normalmente pelo outro. A falta de estímulos luminosos no momento adequado impede que os neurônios estabeleçam
as conexões necessárias para que
a visão se desenvolva.
Da mesma forma, a negligência
e os maus-tratos recebidos numa
fase em que o cérebro está sendo
esculpido pela experiência induzem uma cascata de eventos moleculares que alteram de forma irreversível a estrutura cerebral. Essa moldagem anômala da circuitaria induzida pela violência dirigida contra a criança conduz à
agressividade, à hiperatividade,
aos distúrbios de atenção, à delinquência e ao abuso de drogas.
A partir dos anos 1980, pesquisas do grupo de Teicher, em Harvard, demonstraram que uma
das regiões cerebrais mais afetadas pelos maus-tratos era o sistema límbico. O sistema límbico é
uma área situada na parte central do cérebro, para onde confluem os neurônios encarregados
de regular a memória e as emoções. Há duas estruturas cruciais
para o funcionamento do sistema
límbico: o hipocampo e a amígdala.
O hipocampo é fundamental
para a formação e arquivamento
das memórias emocionais e verbais. A amígdala é responsável
pela criação do conteúdo emocional das memórias, associadas às
respostas agressivas e ao medo,
por exemplo.
Estudos recentes mostraram
que adultos com história de violência sofrida na infância apresentam hipocampos e amígdalas
anatomicamente menores do que
os adultos-controles. A diminuição das dimensões dessas estruturas estava associada a uma performance sofrível nos testes de
memória verbal, como poderia
ser esperado pela função desses
centros cerebrais.
A vulnerabilidade do hipocampo aos efeitos deletérios da negligência ou da violência sofrida pode ser explicada pelo efeito de
hormônios como o cortisol, liberados durante o estresse. O hipocampo é uma das poucas regiões
do cérebro em que os neurônios
continuam a crescer depois do
nascimento e uma das áreas mais
sensíveis à ação do cortisol.
Outros trabalhos documentaram uma inversão na relação de
dominância dos hemisférios cerebrais em indivíduos maltratados
na infância. Classicamente, as
pessoas destras têm a metade esquerda do cérebro mais desenvolvida; nos destros que sofreram
abusos quando crianças, no entanto, é o hemisfério direito que
exibe desenvolvimento mais
acentuado. Como o hemisfério esquerdo integra a percepção e expressão da linguagem, enquanto
o direito processa a informação
espacial e a expressão de emoções,
é possível que crianças maltratadas desenvolvam mais o hemisfério direito por arquivarem e processarem suas experiências negativas nas estações de neurônios localizadas desse lado do cérebro.
Além dessas, outras estruturas
do sistema nervoso em desenvolvimento sofrem o impacto dos
hormônios liberados durante o
estresse. É muito provável que os
circuitos de neurônios moldados
sob essa influência conduzam ao
aparecimento de patologias psiquiátricas.
Como nenhum fenômeno biológico encontra lógica fora da perspectiva evolucionista, que vantagens esses mecanismos neuroadaptativos podem ter trazido a
nossos ancestrais para persistirem
até hoje e desaguarem na violência epidêmica e autodestruidora
de nossas cidades?
Na evolução da espécie humana, as crianças sempre estiveram
sujeitas às agressões do meio. Os
hormônios liberados pelo estresse
moldaram a circuitaria de neurônios de nossos antepassados para
que eles reagissem sem hesitação
e de forma agressiva aos desafios
do ambiente inóspito. Levaram
vantagem reprodutiva os mais
violentos, capazes de defender
com empenho seus descendentes e
o território ocupado por eles.
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