São Paulo, sábado, 23 de março de 2002

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DRAUZIO VARELLA

Raízes biológicas da violência

Há indivíduos com maior probabilidade de desenvolver comportamento violento. No último artigo publicado nesta coluna, dissemos que os principais fatores envolvidos na formação de personalidades com inclinação para a violência são:
1) durante a infância ter apanhado ou ter sido vítima de abuso sexual, assim como ter sofrido humilhações ou desprezo nos primeiros anos de vida;
2) ter vivido a adolescência em família que não lhe tenha transmitido valores altruísticos ou formação moral nem lhe tenha imposto limites de disciplina;
3) ter-se associado a grupos de jovens portadores de comportamento anit-social.
No número de março da revista "Scientific American", Martin Teicher, neurocientista da Universidade Harvard, descreve as descobertas científicas que dão suporte às afirmações acima.
Até o início dos anos 1990, psicólogos e psiquiatras acreditavam que dificuldades sociais e maus-tratos sofridos na infância pudessem estimular mecanismos de auto-defesa que impediriam o desenvolvimento psicológico pleno. As alterações comportamentais resultantes seriam, então, passíveis de reprogramação através de tratamento psicoterápico. A psicoterapia teria o dom de convencer os pacientes a simplesmente "passar por cima" desses traumas do passado.
Os avanços da neurociência ocorridos na década passada contestaram essa visão de que os traumas afetariam apenas o "software" cerebral. As evidências apontaram para a existência de problemas mais sérios na configuração do "hardware", responsáveis por modificações na estrutura das conexões entre os neurônios, nos circuitos cerebrais.
O cérebro dos bebês não nasce com todos os circuitos já conectados, prontos para enfrentar a vida adulta. Ao contrário, a característica mais importante do sistema nervoso é sua plasticidade, isto é, a capacidade que os neurônios têm de estabelecer conexões moldadas pela experiência. Se taparmos um dos olhos de um recém-nascido durante um mês, ele perderá a visão desse olho, embora enxergue normalmente pelo outro. A falta de estímulos luminosos no momento adequado impede que os neurônios estabeleçam as conexões necessárias para que a visão se desenvolva.
Da mesma forma, a negligência e os maus-tratos recebidos numa fase em que o cérebro está sendo esculpido pela experiência induzem uma cascata de eventos moleculares que alteram de forma irreversível a estrutura cerebral. Essa moldagem anômala da circuitaria induzida pela violência dirigida contra a criança conduz à agressividade, à hiperatividade, aos distúrbios de atenção, à delinquência e ao abuso de drogas.
A partir dos anos 1980, pesquisas do grupo de Teicher, em Harvard, demonstraram que uma das regiões cerebrais mais afetadas pelos maus-tratos era o sistema límbico. O sistema límbico é uma área situada na parte central do cérebro, para onde confluem os neurônios encarregados de regular a memória e as emoções. Há duas estruturas cruciais para o funcionamento do sistema límbico: o hipocampo e a amígdala.
O hipocampo é fundamental para a formação e arquivamento das memórias emocionais e verbais. A amígdala é responsável pela criação do conteúdo emocional das memórias, associadas às respostas agressivas e ao medo, por exemplo.
Estudos recentes mostraram que adultos com história de violência sofrida na infância apresentam hipocampos e amígdalas anatomicamente menores do que os adultos-controles. A diminuição das dimensões dessas estruturas estava associada a uma performance sofrível nos testes de memória verbal, como poderia ser esperado pela função desses centros cerebrais.
A vulnerabilidade do hipocampo aos efeitos deletérios da negligência ou da violência sofrida pode ser explicada pelo efeito de hormônios como o cortisol, liberados durante o estresse. O hipocampo é uma das poucas regiões do cérebro em que os neurônios continuam a crescer depois do nascimento e uma das áreas mais sensíveis à ação do cortisol.
Outros trabalhos documentaram uma inversão na relação de dominância dos hemisférios cerebrais em indivíduos maltratados na infância. Classicamente, as pessoas destras têm a metade esquerda do cérebro mais desenvolvida; nos destros que sofreram abusos quando crianças, no entanto, é o hemisfério direito que exibe desenvolvimento mais acentuado. Como o hemisfério esquerdo integra a percepção e expressão da linguagem, enquanto o direito processa a informação espacial e a expressão de emoções, é possível que crianças maltratadas desenvolvam mais o hemisfério direito por arquivarem e processarem suas experiências negativas nas estações de neurônios localizadas desse lado do cérebro.
Além dessas, outras estruturas do sistema nervoso em desenvolvimento sofrem o impacto dos hormônios liberados durante o estresse. É muito provável que os circuitos de neurônios moldados sob essa influência conduzam ao aparecimento de patologias psiquiátricas.
Como nenhum fenômeno biológico encontra lógica fora da perspectiva evolucionista, que vantagens esses mecanismos neuroadaptativos podem ter trazido a nossos ancestrais para persistirem até hoje e desaguarem na violência epidêmica e autodestruidora de nossas cidades?
Na evolução da espécie humana, as crianças sempre estiveram sujeitas às agressões do meio. Os hormônios liberados pelo estresse moldaram a circuitaria de neurônios de nossos antepassados para que eles reagissem sem hesitação e de forma agressiva aos desafios do ambiente inóspito. Levaram vantagem reprodutiva os mais violentos, capazes de defender com empenho seus descendentes e o território ocupado por eles.



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