São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2006

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Festival evidencia filmografia de Werner Herzog

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Personagens extraordinários inspirados em figuras verídicas costumam alimentar a filmografia de ficção do alemão Werner Herzog, 63. "Aguirre, a Cólera dos Deuses" (72), "O Enigma de Kaspar Hauser" (75) e "Fitzcarraldo" (82) são exemplos de longas que recriam, em tom às vezes mais épico, às vezes mais intimista, biografias de homens que parecem ter desembarcado de outro planeta com uma missão secreta.
Nesses casos, as licenças poéticas da ficção respondem pelas características que Herzog procura sublinhar na trajetória dos personagens, como o caráter obsessivo e a incapacidade de se adaptar ao jogo social. Ao contar um conto e aumentar um ponto, ele formata a matéria-prima em algo inserido harmoniosamente na visão de mundo que seus filmes expressam. Parte do procedimento repete-se na filmografia documental de Herzog, homenageado pela retrospectiva internacional do 11º É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, que começa hoje, com sessão de abertura exclusiva para convidados, e é aberto amanhã ao público.
São também extraordinários os personagens que o cineasta escolhe para investigar ou que, fruto das circunstâncias, o escolheram. Como aprendemos a reconhecer em documentários, são pessoas que existem ou existiram. Apesar disso, enxergamos nelas os contornos de figuras de ficção. Não é acidental o caráter híbrido de muitos desses filmes, como "Além do Infinito Azul" (2005).
Um homem (Brad Dourif) nos conta a sua história. Ele vem de Infinito Azul, um planeta submerso em água, e está na Terra, incógnito e em companhia de outros conterrâneos. Objetivo da missão: instalar aqui um núcleo habitacional, dadas as condições ambientais favoráveis. Objetivo do filme, com um pé no documentário e outro na ficção científica: lembrar aos terráqueos que arrumar outro planeta, caso este vá para o vinagre, dá trabalho.
Obsessivo como os melhores personagens da ficção de Herzog é o protagonista de "Homem Urso", exibido em pré-estréia no É Tudo Verdade. Se o ecologista Timothy Treadwell (1957-2003) não tivesse existido, precisaria ser inventado pelo cineasta, tamanho o parentesco com outras figuras de sua filmografia que se comportam como se estivessem assustadoramente desconectadas do real, ou conectadas a uma dimensão que se revela apenas a elas.
A solidez na ficção, no documentário e no meio do caminho entre os dois faz de Herzog caso único no cenário contemporâneo internacional. A retrospectiva presta o inestimável serviço de jogar luzes sobre títulos de distribuição limitada e, portanto, pouco conhecidos, como "Miragem" (70), "O Grande Êxtase do Entalhador Steiner" (74) e "O Pequeno Dieter Precisa Voar" (97).
Em "Lições da Escuridão" (92), imagens de intensa beleza são obtidas em campos de petróleo incendiados durante a Guerra do Golfo. "Sinos do Abismo: Fé e Superstição na Rússia" (93) se movimenta em torno de diversos mitos. "Juliane Cai na Selva" (99) apresenta a única sobrevivente de um desastre aéreo. E "O Diamante Branco" (04) homenageia Dieter Plage (1936-1993), morto em acidente no rio Amazonas.
Nenhum deles, entretanto, carrega a intensidade de "Meu Melhor Inimigo" (99), que abre o baú da parceria turbulenta entre o cineasta e o ator Klaus Kinski (1926-1991). Extraordinário, obsessivo, talvez sociopata? Kinski era tudo isso. Para acentuar a persona, interpretou dois personagens paradigmáticos na filmografia do amigo-inimigo, Don Lope de Aguirre e Brian Sweeney Fitzgerald (o "Fitzcarraldo"). Vinha, o filme sugere, de outro planeta. Herzog seria um bom nome para batizá-lo.


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