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Festival evidencia filmografia de Werner Herzog
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
Personagens extraordinários
inspirados em figuras verídicas
costumam alimentar a filmografia de ficção do alemão Werner
Herzog, 63. "Aguirre, a Cólera dos
Deuses" (72), "O Enigma de Kaspar Hauser" (75) e "Fitzcarraldo"
(82) são exemplos de longas que
recriam, em tom às vezes mais
épico, às vezes mais intimista,
biografias de homens que parecem ter desembarcado de outro
planeta com uma missão secreta.
Nesses casos, as licenças poéticas da ficção respondem pelas características que Herzog procura
sublinhar na trajetória dos personagens, como o caráter obsessivo
e a incapacidade de se adaptar ao
jogo social. Ao contar um conto e
aumentar um ponto, ele formata
a matéria-prima em algo inserido
harmoniosamente na visão de
mundo que seus filmes expressam. Parte do procedimento repete-se na filmografia documental de Herzog, homenageado pela
retrospectiva internacional do 11º
É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, que
começa hoje, com sessão de abertura exclusiva para convidados, e
é aberto amanhã ao público.
São também extraordinários os
personagens que o cineasta escolhe para investigar ou que, fruto
das circunstâncias, o escolheram.
Como aprendemos a reconhecer
em documentários, são pessoas
que existem ou existiram. Apesar
disso, enxergamos nelas os contornos de figuras de ficção. Não é
acidental o caráter híbrido de
muitos desses filmes, como
"Além do Infinito Azul" (2005).
Um homem (Brad Dourif) nos
conta a sua história. Ele vem de
Infinito Azul, um planeta submerso em água, e está na Terra,
incógnito e em companhia de outros conterrâneos. Objetivo da
missão: instalar aqui um núcleo
habitacional, dadas as condições
ambientais favoráveis. Objetivo
do filme, com um pé no documentário e outro na ficção científica: lembrar aos terráqueos que
arrumar outro planeta, caso este
vá para o vinagre, dá trabalho.
Obsessivo como os melhores
personagens da ficção de Herzog
é o protagonista de "Homem Urso", exibido em pré-estréia no É
Tudo Verdade. Se o ecologista Timothy Treadwell (1957-2003) não
tivesse existido, precisaria ser inventado pelo cineasta, tamanho o
parentesco com outras figuras de
sua filmografia que se comportam como se estivessem assustadoramente desconectadas do real,
ou conectadas a uma dimensão
que se revela apenas a elas.
A solidez na ficção, no documentário e no meio do caminho
entre os dois faz de Herzog caso
único no cenário contemporâneo
internacional. A retrospectiva
presta o inestimável serviço de jogar luzes sobre títulos de distribuição limitada e, portanto, pouco conhecidos, como "Miragem"
(70), "O Grande Êxtase do Entalhador Steiner" (74) e "O Pequeno
Dieter Precisa Voar" (97).
Em "Lições da Escuridão" (92),
imagens de intensa beleza são obtidas em campos de petróleo incendiados durante a Guerra do
Golfo. "Sinos do Abismo: Fé e Superstição na Rússia" (93) se movimenta em torno de diversos mitos. "Juliane Cai na Selva" (99)
apresenta a única sobrevivente de
um desastre aéreo. E "O Diamante Branco" (04) homenageia Dieter Plage (1936-1993), morto em
acidente no rio Amazonas.
Nenhum deles, entretanto, carrega a intensidade de "Meu Melhor Inimigo" (99), que abre o baú
da parceria turbulenta entre o cineasta e o ator Klaus Kinski (1926-1991). Extraordinário, obsessivo,
talvez sociopata? Kinski era tudo
isso. Para acentuar a persona, interpretou dois personagens paradigmáticos na filmografia do amigo-inimigo, Don Lope de Aguirre
e Brian Sweeney Fitzgerald (o
"Fitzcarraldo"). Vinha, o filme sugere, de outro planeta. Herzog seria um bom nome para batizá-lo.
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