UOL


São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÚSICA

Cantora, que ficou conhecida com a música "My Baby Just Cares for Me", morreu anteontem, aos 70 anos

Nina Simone não esperou que a deixassem

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

"Ne me quitte pas, il faut oublier, tout peut s'oublier qui s'enfuit déjà, oublier le temps des malentendus et le temps perdu a savoir comment, oublier ces heures qui tuaient parfois, a coups de pourquoi le cour du bonheur, ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas."
Nina Simone está sentada de lado para a platéia num dos primeiros Free Jazz em São Paulo, em 1988, no Anhembi. Seus olhos estão vermelhos, ela bebe um gole de uísque a cada intervalo, prendeu os cabelos no alto da cabeça e veste uma roupa africana aberta nas laterais que deixa à mostra seus seios.
Martela as teclas do piano como se não houvesse amanhã. Canta sentindo cada palavra da triste música de Jacques Brel. Quando pede que seu amado não a abandone, não a abandone, que tudo pode ser esquecido, a platéia acredita que aquela mulher então cinquentona está sofrendo de amor e chora um pouco junto.
Essa característica era o que fazia única a pianista e cantora morta anteontem na França, aos 70 anos. As suas eram as versões definitivas das músicas, fossem canções de dor-de-cotovelo, como a de Brel, fossem títulos pop, como "Here Comes the Sun" e "My Sweet Lord", de George Harrison, ou "Don't Let Me Be Misunderstood", clássico dos anos 60 de Gloria Caldwell, Sol Marcus e Bennie Benjamin que ganharia fama momentânea na era disco com o Santa Esmeralda. Fossem ainda suas composições próprias.
Era aqui que Nina Simone se mostrava ainda mais intransigente, dando broncas no público. Aconteceu várias vezes ao interpretar, por exemplo, "Mississippi Goddam" ("maldito Mississippi"), que escreveu em 1963, após o assassinato do defensor negro de direitos civis Medgar Evers naquele Estado norte-americano.
A estrutura da música e alguns versos dão a impressão de que se trata de algo cômico; se Nina estava inspirada ou tinha bebido umas a mais, a coisa toda ficava ainda mais caricata, o que por vezes fazia a platéia rir. Ela parava o show e perguntava qual era a graça na morte covarde de um jovem negro, assassinado à bala ao chegar em sua casa numa noite.
Então, convocava todos a cantar com ela "We Shall Overcome", adaptação de gospel do começo do século passado que virou hino da luta pelos direitos dos negros na sociedade norte-americana. Ou outra composição sua, "The King of Love Is Dead", que fez em homenagem a Martin Luther King (1929-1968). E tudo ficava bem de novo para ela.
Quando deu entrevista a este repórter, há três anos, desdenhou jovens talentos como Diana Krall ("Não tenho a menor idéia de quem você está falando. Eu sou Nina Simone. Ela é quem?") e confessou que era duro estar em seus sapatos ("Estou muito velha, não quero gravar mais nada. Não é fácil ser Nina Simone").
Nos últimos anos, sua voz já não tinha mais a mesma potência. Fazia cada vez mais esforço para tirar os mesmos efeitos que obtinha no auge, nos anos 60, 70 e 80, quando os graves rascantes e os agudos suaves influenciaram meio mundo e sua mãe. Invertendo os versos iniciais daquela sua interpretação mais famosa, Nina Simone nos abandonou primeiro, antes que começássemos a abandoná-la, enxergando-a como uma "velha exótica", o que sempre é o prenúncio da decadência.


Texto Anterior: Nos EUA 1: Rádio por satélite já tem 500 mil assinantes
Próximo Texto: "Reality show": Lewinsky ensina a seduzir na TV
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.