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MÚSICA
Cantora, que ficou conhecida com a música "My Baby Just Cares for Me", morreu anteontem, aos 70 anos
Nina Simone não esperou que a deixassem
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
"Ne me quitte pas, il faut oublier, tout peut s'oublier
qui s'enfuit déjà, oublier le temps
des malentendus et le temps perdu a savoir comment, oublier ces
heures qui tuaient parfois, a coups
de pourquoi le cour du bonheur,
ne me quitte pas, ne me quitte pas,
ne me quitte pas."
Nina Simone está sentada de lado para a platéia num dos primeiros Free Jazz em São Paulo, em
1988, no Anhembi. Seus olhos estão vermelhos, ela bebe um gole
de uísque a cada intervalo, prendeu os cabelos no alto da cabeça e
veste uma roupa africana aberta
nas laterais que deixa à mostra
seus seios.
Martela as teclas do piano como
se não houvesse amanhã. Canta
sentindo cada palavra da triste
música de Jacques Brel. Quando
pede que seu amado não a abandone, não a abandone, que tudo
pode ser esquecido, a platéia acredita que aquela mulher então cinquentona está sofrendo de amor e
chora um pouco junto.
Essa característica era o que fazia única a pianista e cantora morta anteontem na França, aos 70
anos. As suas eram as versões definitivas das músicas, fossem canções de dor-de-cotovelo, como a
de Brel, fossem títulos pop, como
"Here Comes the Sun" e "My
Sweet Lord", de George Harrison,
ou "Don't Let Me Be Misunderstood", clássico dos anos 60 de
Gloria Caldwell, Sol Marcus e
Bennie Benjamin que ganharia fama momentânea na era disco
com o Santa Esmeralda. Fossem
ainda suas composições próprias.
Era aqui que Nina Simone se
mostrava ainda mais intransigente, dando broncas no público.
Aconteceu várias vezes ao interpretar, por exemplo, "Mississippi
Goddam" ("maldito Mississippi"), que escreveu em 1963, após o
assassinato do defensor negro de
direitos civis Medgar Evers naquele Estado norte-americano.
A estrutura da música e alguns
versos dão a impressão de que se
trata de algo cômico; se Nina estava inspirada ou tinha bebido
umas a mais, a coisa toda ficava
ainda mais caricata, o que por vezes fazia a platéia rir. Ela parava o
show e perguntava qual era a graça na morte covarde de um jovem
negro, assassinado à bala ao chegar em sua casa numa noite.
Então, convocava todos a cantar
com ela "We Shall Overcome",
adaptação de gospel do começo
do século passado que virou hino
da luta pelos direitos dos negros
na sociedade norte-americana.
Ou outra composição sua, "The
King of Love Is Dead", que fez em
homenagem a Martin Luther
King (1929-1968). E tudo ficava
bem de novo para ela.
Quando deu entrevista a este repórter, há três anos, desdenhou
jovens talentos como Diana Krall
("Não tenho a menor idéia de
quem você está falando. Eu sou
Nina Simone. Ela é quem?") e
confessou que era duro estar em
seus sapatos ("Estou muito velha,
não quero gravar mais nada. Não
é fácil ser Nina Simone").
Nos últimos anos, sua voz já não
tinha mais a mesma potência. Fazia cada vez mais esforço para tirar os mesmos efeitos que obtinha
no auge, nos anos 60, 70 e 80,
quando os graves rascantes e os
agudos suaves influenciaram
meio mundo e sua mãe. Invertendo os versos iniciais daquela sua
interpretação mais famosa, Nina
Simone nos abandonou primeiro,
antes que começássemos a abandoná-la, enxergando-a como
uma "velha exótica", o que sempre é o prenúncio da decadência.
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