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São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2003

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MARCELO COELHO

Revólveres, cacos de vidro e operários da velha guarda

"Arte e sociedade: uma relação polêmica" é um nome excessivamente tímido para a exposição que está em cartaz no Itaú Cultural (av. Paulista, 149, até 29 de junho). De Portinari a Nuno Ramos, é bem mais de "arte e política" ou, se quisermos, de "arte engajada" que se trata.
Só que "arte engajada" virou palavrão há muito tempo; e mesmo "arte e política" parece sugerir a aproximação de coisas que a convenção do bom gosto moderno longamente insistiu em manter separadas. E sem dúvida não é preciso ser um adepto radical de Mondrian ou dos minimalistas para torcer o nariz diante de alguns quadros da exposição.
Retratos de Stálin, de Prestes, de Jorge Amado? Lá estão eles, respeitosos exercícios de companheirismo partidário assinados por Carlos Scliar, Virgínia Artigas, Portinari. Se esse tipo de quadro hoje parece completamente ultrapassado, tanto na forma quanto no conteúdo -o líder heróico, a efígie oficial- não se saem muito melhor algumas produções mais recentes.
Numa linguagem "pop", menos comportada e quem sabe mais irônica, figuras como a de Che Guevara, que provavelmente causavam forte impacto ao comparecerem em alguns quadros da década de 70, surgem agora muito esvaziadas de significado.
Não que o célebre rosto do guerrilheiro deixe de dizer o que se quer que ele diga. Mas tudo o que havia de ousado e expressivo ao retratar Guevara durante os anos do regime autoritário se perde com a banalização da sua imagem.
Produções mais recentes tampouco se salvam de um excesso de literalidade, de uma forte submissão ao significado mais imediato que querem transmitir. Uma fileira de revólveres prateados dentro de uma caixa de acrílico, um mapa do Brasil feito de cacos de vidro verde colados no cimento, um livro em branco com as páginas perfuradas por um tiro, são bons testemunhos do agravamento da violência urbana a partir dos anos 80, mas a linguagem "contemporânea" não os torna mais interessantes do que os quadros antiimperialistas da década de 60, também presentes na exposição.
Tio Sam manchado de sangue, a escultura de uma mão prendendo outra, a bandeira americana com a palavra "U$A" em cima, o uso de imagens do jornalismo policial, referências à Declaração Universal dos Direitos do Homem, pessoas algemadas ao fundo, reproduções de sinais de trânsito proibindo conversão à esquerda: seria pedante exigir sutileza e complexidade formal de tantas obras nesse gênero, feitas nas décadas de 60 e 70.
Para bem ou para mal, contudo, o maior mérito delas está no fato de terem sido feitas naquele exato momento; sua expressividade deriva do contexto em que surgiram, do que podiam representar de desabafo e de protesto diante da repressão. Artisticamente, não sei se vão -ou se pretendiam ir- além disso.
Claro que agora é bem fácil fazer este tipo de crítica. Minha intenção, ou melhor, minha pergunta é outra. De todas as tentativas de fazer arte política e engajada durante o século 20, só não se desculpa o famoso "realismo socialista". O termo é xingamento, bem justo aliás, quando se trata dos quadros puramente propagandísticos do regime soviético.
Mas as produções dos clubes de gravura dos anos 50 -Renina Katz, Vasco Prado, Danúbio Gonçalves, Scliar-, embora alinhadas à estética do PC, se destacam nesta exposição exatamente por fugirem da obviedade, pela independência com que tratam os seus temas.
As grandes obras da mostra - "Café", de Portinari, "Operários", de Tarsila do Amaral, "Pescadores", de Di Cavalcanti, "Guerra", de Lasar Segall- são das décadas de 30 e 40. Um período em que o engajamento antifascista e uma linguagem mais ou menos moderna em pintura vinham junto com uma verdadeira descoberta artística do "povo brasileiro".
É assim que o Pescador, o Camponês, o Operário, com letra maiúscula, passavam a ser representados; às vezes com toques de etnografia ao estilo dos viajantes coloniais, às vezes com otimismo épico e idealização política, poucas vezes (como em Segall ou Tarsila) na desolação de sua miséria real. De todo modo, era ainda um olhar muito externo ao tema.
Na mostra do Itaú, vemos como rapidamente esse interesse pôde degenerar em quadros quase pitorescos, "de gênero", no velho estilo do realismo não-socialista: um "Acidente de Trabalho" de Eugênio Sigaud, uma "Alfaiataria" de Jorge Mori, um quadro de pescadores de Raimundo Cela, por exemplo, tratam o assunto "social" com desconcertante placidez.
Se olharmos, entretanto, uma gravura como as "Charqueadas", de Danúbio Gonçalves, os "Pescadores" de Gilvan Samico, os "Varredores" de Carlos Prado, vemos os trabalhadores entregues à sua atividade, não mais posando para o artista. Estão como que imersos num ambiente sombrio, ameaçador, que lembra mais o mundo de Goeldi do que qualquer comemoração partidária. E de algum modo os riscos da gravura, vencendo o material, madeira, pedra, metal, aproximam-se daquilo que é do âmbito do trabalho, da mão, do ofício, em comparação com o olhar mais folgado da pintura a óleo.
O movimento dos "clubes da gravura", na década de 50, foi objeto de uma importante retrospectiva na Pinacoteca do Estado em 1994. Talvez aos poucos se repare uma injustiça. Pelo menos não vi, na mostra em cartaz sobre "arte e sociedade" nenhum motivo para reprovar o engajamento daqueles artistas, quando me parece haver tanto ou mais simplismo em outros, de linguagem mais recente.


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