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MARCELO COELHO
Revólveres, cacos de vidro e operários da velha guarda
"Arte e sociedade: uma relação polêmica" é um nome excessivamente tímido para a
exposição que está em cartaz no
Itaú Cultural (av. Paulista, 149,
até 29 de junho). De Portinari a
Nuno Ramos, é bem mais de "arte
e política" ou, se quisermos, de
"arte engajada" que se trata.
Só que "arte engajada" virou
palavrão há muito tempo; e mesmo "arte e política" parece sugerir
a aproximação de coisas que a
convenção do bom gosto moderno longamente insistiu em manter separadas. E sem dúvida não é preciso ser um adepto radical de
Mondrian ou dos minimalistas
para torcer o nariz diante de alguns quadros da exposição.
Retratos de Stálin, de Prestes, de
Jorge Amado? Lá estão eles, respeitosos exercícios de companheirismo partidário assinados por Carlos Scliar, Virgínia Artigas,
Portinari. Se esse tipo de quadro
hoje parece completamente ultrapassado, tanto na forma quanto
no conteúdo -o líder heróico, a
efígie oficial- não se saem muito
melhor algumas produções mais
recentes.
Numa linguagem "pop", menos
comportada e quem sabe mais
irônica, figuras como a de Che
Guevara, que provavelmente
causavam forte impacto ao comparecerem em alguns quadros da
década de 70, surgem agora muito esvaziadas de significado.
Não que o célebre rosto do guerrilheiro deixe de dizer o que se
quer que ele diga. Mas tudo o que
havia de ousado e expressivo ao
retratar Guevara durante os anos
do regime autoritário se perde
com a banalização da sua imagem.
Produções mais recentes tampouco se salvam de um excesso de
literalidade, de uma forte submissão ao significado mais imediato
que querem transmitir. Uma fileira de revólveres prateados dentro
de uma caixa de acrílico, um mapa do Brasil feito de cacos de vidro verde colados no cimento, um
livro em branco com as páginas
perfuradas por um tiro, são bons
testemunhos do agravamento da
violência urbana a partir dos
anos 80, mas a linguagem "contemporânea" não os torna mais
interessantes do que os quadros
antiimperialistas da década de
60, também presentes na exposição.
Tio Sam manchado de sangue,
a escultura de uma mão prendendo outra, a bandeira americana
com a palavra "U$A" em cima, o
uso de imagens do jornalismo policial, referências à Declaração
Universal dos Direitos do Homem, pessoas algemadas ao fundo, reproduções de sinais de trânsito proibindo conversão à esquerda: seria pedante exigir sutileza e complexidade formal de
tantas obras nesse gênero, feitas
nas décadas de 60 e 70.
Para bem ou para mal, contudo, o maior mérito delas está no
fato de terem sido feitas naquele
exato momento; sua expressividade deriva do contexto em que
surgiram, do que podiam representar de desabafo e de protesto
diante da repressão. Artisticamente, não sei se vão -ou se pretendiam ir- além disso.
Claro que agora é bem fácil fazer este tipo de crítica. Minha intenção, ou melhor, minha pergunta é outra. De todas as tentativas de fazer arte política e engajada durante o século 20, só não se
desculpa o famoso "realismo socialista". O termo é xingamento,
bem justo aliás, quando se trata
dos quadros puramente propagandísticos do regime soviético.
Mas as produções dos clubes de
gravura dos anos 50 -Renina
Katz, Vasco Prado, Danúbio
Gonçalves, Scliar-, embora alinhadas à estética do PC, se destacam nesta exposição exatamente por fugirem da obviedade, pela
independência com que tratam os seus temas.
As grandes obras da mostra - "Café", de Portinari, "Operários",
de Tarsila do Amaral, "Pescadores", de Di Cavalcanti, "Guerra",
de Lasar Segall- são das décadas de 30 e 40. Um período em que o
engajamento antifascista e uma linguagem mais ou menos moderna em pintura vinham junto com uma verdadeira descoberta
artística do "povo brasileiro".
É assim que o Pescador, o Camponês, o Operário, com letra
maiúscula, passavam a ser representados; às vezes com toques de
etnografia ao estilo dos viajantes
coloniais, às vezes com otimismo
épico e idealização política, poucas vezes (como em Segall ou Tarsila) na desolação de sua miséria
real. De todo modo, era ainda um
olhar muito externo ao tema.
Na mostra do Itaú, vemos como
rapidamente esse interesse pôde
degenerar em quadros quase pitorescos, "de gênero", no velho estilo do realismo não-socialista: um "Acidente de Trabalho" de
Eugênio Sigaud, uma "Alfaiataria" de Jorge Mori, um quadro de
pescadores de Raimundo Cela,
por exemplo, tratam o assunto
"social" com desconcertante placidez.
Se olharmos, entretanto, uma
gravura como as "Charqueadas",
de Danúbio Gonçalves, os "Pescadores" de Gilvan Samico, os "Varredores" de Carlos Prado, vemos os trabalhadores entregues à sua
atividade, não mais posando para o artista. Estão como que imersos num ambiente sombrio, ameaçador, que lembra mais o
mundo de Goeldi do que qualquer comemoração partidária. E
de algum modo os riscos da gravura, vencendo o material, madeira, pedra, metal, aproximam-se daquilo que é do âmbito do trabalho, da mão, do ofício, em comparação com o olhar mais folgado
da pintura a óleo.
O movimento dos "clubes da gravura", na década de 50, foi objeto de uma importante retrospectiva na Pinacoteca do Estado
em 1994. Talvez aos poucos se repare uma injustiça. Pelo menos
não vi, na mostra em cartaz sobre "arte e sociedade" nenhum motivo para reprovar o engajamento daqueles artistas, quando me parece haver tanto ou mais simplismo em outros, de linguagem mais recente.
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