São Paulo, sábado, 23 de abril de 2005

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LIVROS

ROMANCE

Feita a oito mãos, obra usa Cary Grant como agente secreto britânico

Italianos misturam fatos e boatos da Guerra Fria em "54"

DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois de "Q", romance medieval em que se infiltraram nos bastidores da Inquisição e dos círculos anabatistas, os escritores do coletivo italiano Wu Ming avançaram milhares de páginas em seu calendário e escolheram o ano de 1954 para ambientar sua(s) nova(s) (H)história(s).
Explicando os parênteses: "54", lançado agora no Brasil pela Conrad e disponível para download em www.conradeditora.com.br/hotsite/54/index.htm, costura diversas tramas, personagens reais e fictícios, em um romance policial cuja matéria-prima é a história com "H" maiúsculo.
"[1954] É o ano da ressurreição para Cary Grant, que tinha se retirado dos filmes no final de 1952. É o ano da batalha de Dien Bien Phu, em que a guerrilha do general Giap derrotou o império francês e desencadeou uma série de eventos que levaram à Guerra do Vietnã. É também o ano em que a TV chegou à Itália", afirma Roberto Bui, o Wu Ming 1, enumerando parte dos muitos protagonistas do livro. A TV inclusive.
Escrito por oito mãos -os integrantes do coletivo se denominam Wu Ming 1, Wu Ming 2 e assim por diante, "como uma banda de rock"-, "54" vai alternando vozes e histórias que acontecem em diversas partes do mundo e que, nalgum momento, irão se encontrar. E um televisor americano McGuffin modelo "deluxe", sexo masculino, terá papel importante na trama: "Quando você olha para a tela da TV, ela não olha de volta para você? Sim, ela olha", provoca o escritor.
Archibald Alexander Leach (ou Cary Grant, para o mundo) também é peça fundamental no xadrez dos Wu Ming (em chinês, o termo significa "sem nome").
Modelo de masculinidade e elegância no período, o ator inglês naturalizado americano se preparava, na vida real, para filmar "Ladrão de Casaca", de Hitchcock. No romance, será convocado pelo MI-6, serviço secreto britânico, para uma missão especial. Em plena Guerra Fria, deve se encontrar com o general Tito para interpretá-lo em uma suposta produção hollywoodiana sobre a revolução comunista da Iugoslávia.
Maluquice? "(...) Certamente existem comunistas que poderão ser úteis para nossos objetivos. Tito é um deles", explica o agente diante de um Cary Grant perplexo com a proposta. (A Iugoslávia de Tito, apesar de comunista, era então desalinhada a Moscou.)
De Palm Springs, na Califórnia, a narrativa salta para Nápoles, onde está exilado o mafioso dom Salvatore Lucania (para o mundo, Charles "Lucky" Luciano). Botado para correr de Nova York, onde a situação tinha apertado desde o final da década de 40, Luciano divide seu tempo entre as corridas de cavalo e o tráfico de heroína pelo mar Mediterrâneo.
Mas "54" trata ainda de gente comum. Enfia o leitor em uma rodada de carteado no bar Aurora, em Bolonha, onde velhos comunistas e jovens idealistas discutem o noticiário do dia; infiltra-se com ele nos conflitos entre italianos, iugoslavos e as tropas de ocupação no então Território Livre de Trieste... Ler o romance é respirar o clima de 1954.
"A realidade e a história são mais ricas e mais estranhas do que pensamos, repletas de fatos aparentemente "não-realistas': coincidências bizarras, coisas que ninguém consegue explicar", argumenta Bui. E certamente não seria em meio às toneladas de microfilmes e jornais antigos pesquisados entre 1999 e 2001 que os Wu Ming encontrariam uma declaração como esta, de Tito comentando o corte dos ternos de Grant: "Nós, filhos de proletários, precisamos conquistá-la, a elegância".
Pois há que ser italiano para sequer sacá-la da manga. "Na Itália, "54" foi considerado o menos "politizado" de nossos romances. Os italianos estão imersos na história que descrevemos, então tendem a se concentrar em outras coisas, na Máfia, nas relações familiares e na obsessão [dos personagens] com o estilo e as roupas", justifica o autor -ou melhor, um deles.


54
Autores:
Wu Ming
Editora: Conrad
Tradução: Romana Ghirotti Prado
Quanto: R$ 54 (606 págs.)


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