|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
ROMANCE
Feita a oito mãos, obra usa Cary Grant como agente secreto britânico
Italianos misturam fatos e boatos da Guerra Fria em "54"
DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL
Depois de "Q", romance medieval em que se infiltraram nos bastidores da Inquisição e dos círculos anabatistas, os escritores do
coletivo italiano Wu Ming avançaram milhares de páginas em
seu calendário e escolheram o ano
de 1954 para ambientar sua(s) nova(s) (H)história(s).
Explicando os parênteses: "54",
lançado agora no Brasil pela Conrad e disponível para download
em www.conradeditora.com.br/hotsite/54/index.htm, costura diversas tramas, personagens reais
e fictícios, em um romance policial cuja matéria-prima é a história com "H" maiúsculo.
"[1954] É o ano da ressurreição
para Cary Grant, que tinha se retirado dos filmes no final de 1952. É
o ano da batalha de Dien Bien
Phu, em que a guerrilha do general Giap derrotou o império francês e desencadeou uma série de
eventos que levaram à Guerra do
Vietnã. É também o ano em que a
TV chegou à Itália", afirma Roberto Bui, o Wu Ming 1, enumerando parte dos muitos protagonistas do livro. A TV inclusive.
Escrito por oito mãos -os integrantes do coletivo se denominam Wu Ming 1, Wu Ming 2 e assim por diante, "como uma banda de rock"-, "54" vai alternando vozes e histórias que acontecem em diversas partes do mundo e que, nalgum momento, irão
se encontrar. E um televisor americano McGuffin modelo "deluxe", sexo masculino, terá papel
importante na trama: "Quando
você olha para a tela da TV, ela
não olha de volta para você? Sim,
ela olha", provoca o escritor.
Archibald Alexander Leach (ou
Cary Grant, para o mundo) também é peça fundamental no xadrez dos Wu Ming (em chinês, o
termo significa "sem nome").
Modelo de masculinidade e elegância no período, o ator inglês
naturalizado americano se preparava, na vida real, para filmar "Ladrão de Casaca", de Hitchcock.
No romance, será convocado pelo
MI-6, serviço secreto britânico,
para uma missão especial. Em
plena Guerra Fria, deve se encontrar com o general Tito para interpretá-lo em uma suposta produção hollywoodiana sobre a revolução comunista da Iugoslávia.
Maluquice? "(...) Certamente
existem comunistas que poderão
ser úteis para nossos objetivos. Tito é um deles", explica o agente
diante de um Cary Grant perplexo
com a proposta. (A Iugoslávia de
Tito, apesar de comunista, era então desalinhada a Moscou.)
De Palm Springs, na Califórnia,
a narrativa salta para Nápoles, onde está exilado o mafioso dom
Salvatore Lucania (para o mundo,
Charles "Lucky" Luciano). Botado para correr de Nova York, onde a situação tinha apertado desde o final da década de 40, Luciano divide seu tempo entre as corridas de cavalo e o tráfico de heroína pelo mar Mediterrâneo.
Mas "54" trata ainda de gente
comum. Enfia o leitor em uma rodada de carteado no bar Aurora,
em Bolonha, onde velhos comunistas e jovens idealistas discutem
o noticiário do dia; infiltra-se com
ele nos conflitos entre italianos,
iugoslavos e as tropas de ocupação no então Território Livre de
Trieste... Ler o romance é respirar
o clima de 1954.
"A realidade e a história são
mais ricas e mais estranhas do que
pensamos, repletas de fatos aparentemente "não-realistas': coincidências bizarras, coisas que ninguém consegue explicar", argumenta Bui. E certamente não seria
em meio às toneladas de microfilmes e jornais antigos pesquisados
entre 1999 e 2001 que os Wu Ming
encontrariam uma declaração como esta, de Tito comentando o
corte dos ternos de Grant: "Nós,
filhos de proletários, precisamos
conquistá-la, a elegância".
Pois há que ser italiano para sequer sacá-la da manga. "Na Itália,
"54" foi considerado o menos "politizado" de nossos romances. Os
italianos estão imersos na história
que descrevemos, então tendem a
se concentrar em outras coisas, na
Máfia, nas relações familiares e na
obsessão [dos personagens] com
o estilo e as roupas", justifica o autor -ou melhor, um deles.
54
Autores: Wu Ming
Editora: Conrad
Tradução: Romana Ghirotti Prado
Quanto: R$ 54 (606 págs.)
Texto Anterior: Retrato de Shakespeare é falso, diz especialista Próximo Texto: Coletivo é só a ponta de um iceberg pop no país Índice
|