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ERUDITO
Lorin Maazel compõe ópera baseada no romance "1984", de George Orwell; espetáculo estréia em maio em Londres
Regente americano leva "Big Brother" para os palcos
JESSICA DUCHEN
DO "INDEPENDENT"
No dia 3 de maio, o público poderá assistir a "Big Brother" na
Royal Opera House, em Londres.
Trata-se da estréia mundial da
ópera "1984", baseada no romance homônimo de George Orwell,
assinada pelo compositor e regente americano Lorin Maazel.
A gênese da ópera surpreendeu
até mesmo a seu compositor. Em
meados dos anos 1990 o diretor
do teatro Prinzregenten de Munique, August Everding, ouviu uma
obra de Maazel para violino, violoncelo e orquestra e o procurou
para falar da possibilidade de lhe
encomendar uma ópera. "Nunca
tinha passado por minha cabeça
compor uma ópera", afirma Maazel, 75. "Mas o professor Everding
ouviu naquela peça um potencial
operístico latente cuja existência
não me passara pela cabeça. Foi
preciso muito tempo para ele
conseguir me convencer. Nós discutimos durante um ano, e, finalmente, ele disse que gostaria de
encomendar a ópera."
Entretanto, a morte de Everding
deixou o projeto no limbo, sem
um financiamento garantido, então o teatro não pôde levá-lo
adiante. "Foi assim que a ópera
veio a Londres, que, é claro, é sua
"casa" certa", diz Maazel. Na oligarquia futurista e de pesadelo
mostrada, a Inglaterra foi renomeada de "pista de pouso um".
Transformar uma obra literária
tão famosa em ópera é uma tarefa
que faria muitos compositores
empalidecer. Mas Maazel fala dela
no tom de um homem imbuído
de uma missão. E, contando com
a ajuda de dois libretistas, Maazel
deve ter evitado pelo menos um
dos perigos ocultos que vivem à
espreita de óperas novas. "Tenho
consciência de minhas limitações", diz Maazel, "e fico muito
satisfeito em contar com um libreto extremamente profissional
e lindamente escrito".
O fato de o diretor teatral também ter se envolvido no projeto
desde o início -o canadense Robert Lepage, célebre por seus trabalhos que vão desde Shakespeare até o cinema, passando pelo
Cirque du Soleil- fez uma diferença tremenda: "Significa que a
ópera é um evento totalmente
unificado. Trabalhamos todos em
conjunto, complementando os
esforços um do outro".
O objetivo, diz Maazel, é "relatar
a história da maneira mais simples e direta possível. Todos nós
achamos que a história em si é tão
forte que não é preciso recorrer a
nenhum artifício".
A equipe condensou o livro de
Orwell num roteiro devastador e
inteiramente verossímil, evocando um livro "para além dos ismos", nas palavras de Maazel:
"Para além do comunismo, do
fascismo, de qualquer sistema político -um mundo no qual o poder está nas mãos de alguns poucos sem rosto, que o manejam em
nome do próprio poder".
Na história em questão, gigantescas telas berram instruções para exercícios físicos matinais,
anúncios de lavagem cerebral declaram o aumento inusitado da
ração de chocolate para porções
cada vez menores, e o pavor de ser
enviado à sala 101 é capaz de reduzir um pai de família de boa índole a um estado em que ele acaba
implorando a seus captores para
que, em vez disso, matem seus
próprios filhos diante dele.
Na cena de tortura, quando
O'Brien -tentando forçar Winston a acreditar que dois mais dois
são cinco- solta Winston, o herói infeliz tomba, chorando, sobre
o ombro de seu torturador. E
O'Brien retoma a tortura.
"Fiz de O'Brien um sádico legítimo", diz Maazel, "um homem
que cantarola uma canção popular enquanto enfia uma bala no
corpo de uma pessoa".
Maazel conta que compreendeu
algo sobre o funcionamento das
mentes de torturadores quando
conversou com antigos oficiais da
SS, 15 ou 20 anos após a Segunda
Guerra Mundial. "A razão pela
qual eles às vezes me faziam confidências era que eu era estrangeiro, e, para eles, era como a hora da
confissão. Era assustador. Eles diziam coisas como: "Eu não queria
fazer aquilo, mas recebi ordens
para isso. Quando puxei a alavanca ou liguei o gás, da primeira vez,
meu coração sentiu um certo
aperto, mas depois você se acostuma". Então aprendi alguma coisa sobre a mentalidade do sádico.
É uma mentalidade que geralmente atribuímos aos outros, mas
que talvez seja um problema latente que todos nós ocultamos. A
alma humana é complexa, e todos
nós somos capazes de agir de maneira muito inesperada, sob determinadas circunstâncias."
O tema é adequado para uma
ópera? Totalmente, pensa Maazel.
Para ele, "1984" é feito da "própria
essência da ópera: um amor trágico que acontece dentro de um sistema político hediondo, de modo
que a sobrevivência dos amantes
é impossível. O cerne é uma história de amor íntima e terna. Nós tivemos muito trabalho para garantir que Winston e Julia fossem
seres humanos verossímeis, com
os quais o espectador pudesse se
identificar -sobretudo por sua
coragem de viver seu momento
de amor num mundo violento em
que qualquer sentimento pessoal
é visto como afronta ao Estado,
onde o pensar por si mesmo é um
crime passível de ser punido com
a morte. Acho que, quando o espetáculo chegar ao fim, não haverá ninguém no teatro que não terá
derramado lágrimas".
Algumas idéias sobre o papel da
ópera na sociedade aumentaram
ainda mais a atração do tema.
"Trocando idéias com o libretista
e o diretor teatral, antes mesmo
de ter sido escrita uma nota ou
uma palavra, pensamos sobre o
desafio que seria compor uma
ópera com um libreto que fosse
pertinente para os dias de hoje.
Começamos a adaptar a história
de uma maneira que fosse contemporânea, sem fazer qualquer
artifício", conta o maestro.
"As pessoas não pensam no Metropolitan Opera de New York,
em Covent Garden ou na Ópera
de Paris como locais onde se fala
das questões mais candentes de
hoje. A ópera muitas vezes é vista
como um exercício elitista, um lugar para onde as pessoas vão para
ostentar suas jóias, onde os assentos custam caro. O mundo da
ópera parece ter sido marginalizado. Sempre lutei contra isso."
Tradução Clara Allain
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