São Paulo, sábado, 23 de abril de 2005

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ERUDITO

Lorin Maazel compõe ópera baseada no romance "1984", de George Orwell; espetáculo estréia em maio em Londres

Regente americano leva "Big Brother" para os palcos

JESSICA DUCHEN
DO "INDEPENDENT"

No dia 3 de maio, o público poderá assistir a "Big Brother" na Royal Opera House, em Londres. Trata-se da estréia mundial da ópera "1984", baseada no romance homônimo de George Orwell, assinada pelo compositor e regente americano Lorin Maazel.
A gênese da ópera surpreendeu até mesmo a seu compositor. Em meados dos anos 1990 o diretor do teatro Prinzregenten de Munique, August Everding, ouviu uma obra de Maazel para violino, violoncelo e orquestra e o procurou para falar da possibilidade de lhe encomendar uma ópera. "Nunca tinha passado por minha cabeça compor uma ópera", afirma Maazel, 75. "Mas o professor Everding ouviu naquela peça um potencial operístico latente cuja existência não me passara pela cabeça. Foi preciso muito tempo para ele conseguir me convencer. Nós discutimos durante um ano, e, finalmente, ele disse que gostaria de encomendar a ópera."
Entretanto, a morte de Everding deixou o projeto no limbo, sem um financiamento garantido, então o teatro não pôde levá-lo adiante. "Foi assim que a ópera veio a Londres, que, é claro, é sua "casa" certa", diz Maazel. Na oligarquia futurista e de pesadelo mostrada, a Inglaterra foi renomeada de "pista de pouso um".
Transformar uma obra literária tão famosa em ópera é uma tarefa que faria muitos compositores empalidecer. Mas Maazel fala dela no tom de um homem imbuído de uma missão. E, contando com a ajuda de dois libretistas, Maazel deve ter evitado pelo menos um dos perigos ocultos que vivem à espreita de óperas novas. "Tenho consciência de minhas limitações", diz Maazel, "e fico muito satisfeito em contar com um libreto extremamente profissional e lindamente escrito".
O fato de o diretor teatral também ter se envolvido no projeto desde o início -o canadense Robert Lepage, célebre por seus trabalhos que vão desde Shakespeare até o cinema, passando pelo Cirque du Soleil- fez uma diferença tremenda: "Significa que a ópera é um evento totalmente unificado. Trabalhamos todos em conjunto, complementando os esforços um do outro".
O objetivo, diz Maazel, é "relatar a história da maneira mais simples e direta possível. Todos nós achamos que a história em si é tão forte que não é preciso recorrer a nenhum artifício".
A equipe condensou o livro de Orwell num roteiro devastador e inteiramente verossímil, evocando um livro "para além dos ismos", nas palavras de Maazel: "Para além do comunismo, do fascismo, de qualquer sistema político -um mundo no qual o poder está nas mãos de alguns poucos sem rosto, que o manejam em nome do próprio poder".
Na história em questão, gigantescas telas berram instruções para exercícios físicos matinais, anúncios de lavagem cerebral declaram o aumento inusitado da ração de chocolate para porções cada vez menores, e o pavor de ser enviado à sala 101 é capaz de reduzir um pai de família de boa índole a um estado em que ele acaba implorando a seus captores para que, em vez disso, matem seus próprios filhos diante dele.
Na cena de tortura, quando O'Brien -tentando forçar Winston a acreditar que dois mais dois são cinco- solta Winston, o herói infeliz tomba, chorando, sobre o ombro de seu torturador. E O'Brien retoma a tortura.
"Fiz de O'Brien um sádico legítimo", diz Maazel, "um homem que cantarola uma canção popular enquanto enfia uma bala no corpo de uma pessoa".
Maazel conta que compreendeu algo sobre o funcionamento das mentes de torturadores quando conversou com antigos oficiais da SS, 15 ou 20 anos após a Segunda Guerra Mundial. "A razão pela qual eles às vezes me faziam confidências era que eu era estrangeiro, e, para eles, era como a hora da confissão. Era assustador. Eles diziam coisas como: "Eu não queria fazer aquilo, mas recebi ordens para isso. Quando puxei a alavanca ou liguei o gás, da primeira vez, meu coração sentiu um certo aperto, mas depois você se acostuma". Então aprendi alguma coisa sobre a mentalidade do sádico. É uma mentalidade que geralmente atribuímos aos outros, mas que talvez seja um problema latente que todos nós ocultamos. A alma humana é complexa, e todos nós somos capazes de agir de maneira muito inesperada, sob determinadas circunstâncias."
O tema é adequado para uma ópera? Totalmente, pensa Maazel. Para ele, "1984" é feito da "própria essência da ópera: um amor trágico que acontece dentro de um sistema político hediondo, de modo que a sobrevivência dos amantes é impossível. O cerne é uma história de amor íntima e terna. Nós tivemos muito trabalho para garantir que Winston e Julia fossem seres humanos verossímeis, com os quais o espectador pudesse se identificar -sobretudo por sua coragem de viver seu momento de amor num mundo violento em que qualquer sentimento pessoal é visto como afronta ao Estado, onde o pensar por si mesmo é um crime passível de ser punido com a morte. Acho que, quando o espetáculo chegar ao fim, não haverá ninguém no teatro que não terá derramado lágrimas".
Algumas idéias sobre o papel da ópera na sociedade aumentaram ainda mais a atração do tema. "Trocando idéias com o libretista e o diretor teatral, antes mesmo de ter sido escrita uma nota ou uma palavra, pensamos sobre o desafio que seria compor uma ópera com um libreto que fosse pertinente para os dias de hoje. Começamos a adaptar a história de uma maneira que fosse contemporânea, sem fazer qualquer artifício", conta o maestro.
"As pessoas não pensam no Metropolitan Opera de New York, em Covent Garden ou na Ópera de Paris como locais onde se fala das questões mais candentes de hoje. A ópera muitas vezes é vista como um exercício elitista, um lugar para onde as pessoas vão para ostentar suas jóias, onde os assentos custam caro. O mundo da ópera parece ter sido marginalizado. Sempre lutei contra isso."


Tradução Clara Allain

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