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FERNANDO GABEIRA
A bibliotecária dos sonhos
A mensagem era um oásis
no deserto de spams, mensagens comerciais e declarações políticas. Assinava-a Tiziana, uma
bibliotecária de Genebra, e dizia
mais ou menos assim:
"Caro senhor:
Se o senhor esteve em Genebra
no princípio de novembro de 1997
e veio à biblioteca de francês (Salle Thibaudet) da Faculdade de
Letras da Universidade de Genebra para consultar a obra de Matarasso e Petitfils "Álbum Rimbaud", da Pléiade (1967), e se o senhor é autor das palavras de
agradecimento anexas, eu sou a
bibliotecária que encontrou a
obra para o senhor. Trocamos
poucas palavras, mas o senhor
disse que talvez voltaria. "Talvez,
até uma próxima."
Depois disso, tive a ocasião de
comprar, numa loja de livros raros, um exemplar da obra acima
mencionada -obra não encontrável, como o senhor sabe. Eu a
guardei para poder lhe oferecer,
caso o senhor voltasse.
A vida decidiu de outra forma.
Mudei de posto de trabalho. Talvez o senhor não tenha me encontrado ou não tenha tido a oportunidade de voltar. Saiba que, se tiver oportunidade de voltar a Genebra, terei um grande prazer em
lhe entregar a obra."
A mensagem termina com a
promessa de Tiziana -uma promessa de enviar pelo correio o bilhete de agradecimento que o freqüentador da biblioteca tinha escrito. No momento, ela estava
sem scanner, logo, teria de enviar
a fotocópia da forma tradicional.
Assim que terminei de ler a
mensagem, compreendi que havia um engano. Talvez tenha estado na Faculdade de Letras num
debate em 1997. Mas não me lembro da biblioteca nem do livro de
Rimbaud. Desfiz o equívoco e
agradeci, mas não podia deixar
de manifestar minha admiração
pelo gesto. "Se todos os bibliotecários do mundo..."
Já havia tido uma experiência,
quando asilado na Suécia. Procurei um livro numa biblioteca de
bairro. Não tinham. Era um texto
de Sartre sobre Flaubert, um calhamaço editado pela Gallimard,
com um preço acima de meus recursos. A bibliotecária disse: "Não
se preocupe, vamos comprá-lo e
emprestaremos a você".
A diferença nos casos é que, na
Suécia, a coisa era fria e profissional. O texto de Sartre ou um manual de jardinagem teriam o
mesmo tratamento. Neste caso de
agora, há um envolvimento emocional, uma espécie de relação
pessoal com o texto, uma compreensão da raridade do livro.
Estou consciente de que essas
coisas acontecem apenas em países onde se investe mais dinheiro
para oferecer livros ao público.
No entanto, não é essa a questão.
O exemplo de Tiziana me comoveu porque reforçou uma das
crenças que nunca me abandonaram, apesar de tantas revisões intelectuais. É a da superioridade
de se fazer o que se gosta, de se
apaixonar pelo trabalho.
Houve um momento em que
duvidei disto. Foi, talvez, no meio
da década de 70, quando Herbert
Marcuse falava de um outro tipo
de trabalhador, que despendia
apenas a energia necessária para
ganhar a vida, que não se envolvia emocionalmente com o sistema. Era exatamente como vivia,
fazendo trabalho temporário
aqui e ali. Mesmo nesse momento, no entanto, o distanciamento
emocional do trabalho, o consumo mínimo de energia existiam
para liberar tempo e disposição
para fazer o que se gostava realmente.
Não tenho talento, ou melhor,
conhecimentos suficientes, para
texto de auto-ajuda. O pouco que
sei também não é válido para todos. Com a volta ao Brasil, incorporei uma nova dimensão a esse
respeito pelo amor ao que se faz. É
a dimensão pedagógica.
Volta e meia, a gente se vê discutindo sobre adolescentes que
têm baixo rendimento escolar,
mas são apaixonados por outra
coisa -esporte, por exemplo. E
sempre digo: se gosta muito de alguma atividade, acabará aprendendo nela os mistérios do mundo e da existência. Não há tanto
com que se preocupar.
Por isso, se procurasse um livro
inexistente na biblioteca de Tiziana, imagino sua preocupação em
tentar encontrá-lo em algum canto do mundo. Mas diria o mesmo
que o poeta brasileiro Carlos
Drummond de Andrade escreveu
no poema "Hotel Toffolo", um
mitológico lugar de Ouro Preto:
"E vieram dizer-nos que não
havia jantar.
Como se não houvesse outras
fomes
e outros alimentos.
Como se a cidade não servisse o
seu pão
de nuvens".
Certamente, com essa mensagem pela internet, você me ensinou mais do que aprenderia no
"Álbum Rimbaud". Um beijo, Tiziana.
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