São Paulo, quinta, 23 de abril de 1998

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A ciência como superstição

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Nenhum pensador controla os sentidos que se podem atribuir às suas idéias ou o uso que os demais podem (ou não) fazer delas. A história da ciência registra o caso de descobertas fecundas que ficaram longamente adormecidas no solo estéril da negligência e do esquecimento. Foi o que aconteceu com o pai da genética, o monge austríaco Gregor Mendel, cujo trabalho seminal de 1865, elucidando as leis da hereditariedade, permaneceu totalmente ignorado por mais de 30 anos.
Outro risco, mais frequente, é a deturpação deliberada ou inadvertida. As relações entre filosofia e poder, por exemplo, são um laboratório incomparável de metamorfoses monstruosas e mutações inusitadas na apropriação de idéias alheias. Sempre foi reconfortante saber que as melhores inteligências do passado endossariam os nossos atos, justificariam os nossos compromissos e continuam firmes do nosso lado.
Stálin invocou Marx, Hitler invocou Nietzsche, Nixon invocou Keynes, FHC invocou Weber. É pena que não se tenha inventado ainda um dispositivo anti-sequestro capaz de proteger os nomes e o pensamento dos grandes clássicos de políticos e governantes ávidos de lustro e boa consciência. "A autoridade dos mortos", dizia Machado de Assis, "não aflige e é definitiva".
A frequência de eventos desse tipo nas trocas intelectuais -um fator constante na história das idéias- levou o biólogo inglês Thomas Huxley (o "buldogue de Darwin") a postular uma lei geral: "O destino de uma nova verdade é começar como heresia e terminar como superstição". A grande ironia é que agora são as heresias da macro (darwiniana) e da microbiologia (molecular) que parecem estar se tornando verdadeiras superstições.
É possível que haja um pêndulo secreto nisso tudo -uma espécie de retorno e vingança secreta do recalcado.
Não faz muito tempo, o "marxismo científico" prometia que somente com a superação da luta de classes, a eliminação do mercado competitivo e a organização consciente da produção social a humanidade poderia conquistar o "reino da liberdade" e "livrar-se dos últimos vestígios da sua animalidade" (Engels). A superabundância permitida pelo desenvolvimento das forças produtivas e o domínio crescente da natureza seriam o passaporte da nossa "liberdade biológica". Um "novo homem" estava prestes a nascer.
Sustentando essa crença estava a noção de que o ser humano é produto da história, e sua mente é dotada de ilimitada plasticidade. Quando chegamos ao mundo, somos todos tão iguais quanto Fords produzidos numa linha de produção em massa, e nossa mente é tão virgem e receptiva quanto uma página em branco.
Afirmar a existência de uma "natureza humana" era um "preconceito burguês", e, no afã de erradicar o "vírus ideológico" embutido no darwinismo, a "biologia proletária" de Lisenko decretou o fim da competição intra-espécie no mundo natural.
Tudo isso, é claro, são águas passadas. A fé no "marxismo científico" anda em vias de extinção planetária e está cada vez mais difícil encontrar quem ainda se anime a sustentar que o software do meio sócio-cultural é tudo, o hardware da genética e da biologia evolucionária é nada. Nem tudo é história. O espantoso, em retrospecto, é que crenças como essas tenham povoado a imaginação de tantos por tanto tempo.
O problema, contudo, é que o pêndulo do acreditar parece agora estar apresentando claros indícios de mover-se exageradamente na direção oposta. A biologia que se imaginava prestes a ser varrida para a "lata de lixo da história", como fruto espúrio de uma "ideologia burguesa", está de volta para vingar as humilhações e o descaso sofridos.
O resultado é que a heresia, até certo ponto salutar, da reação naturalista aos excessos da ortodoxia historicista ameaça tornar-se, ela própria, uma vigorosa e insinuante superstição. Há um novo fundamentalismo no ar.
Para os adeptos do novo credo, não há nada no comportamento humano que um coquetel judicioso de "valor de sobrevivência" e "gene egoísta" não seja capaz de explicar. Do sorriso do recém-nascido ao papel do cheiro na atração sexual, passando pelo uso de cosméticos durante a ovulação e pelo consumo imoderado de fast food à base de açúcar, sal e gordura, há razões neodarwinistas para tudo. O animal humano é um fantoche preso aos cordões invisíveis de atavismos ancestrais e genes implacáveis que o tiranizam em segredo.
Como pontifica a filósofa e zoóloga britânica Helena Cronin, em artigo publicado no número especial da "Time" dedicado à ciência que apareceu no início do ano ("The New Age of Discovery"): "Da última década para cá, a teoria evolucionária colheu descobertas estonteantes: ela devassou ("pried open") a caixa de ferramentas metodicamente arranjada que é a nossa mente... Nossas mentes e cérebros, tal como os nossos corpos, foram forjados pela seleção natural para resolver problemas enfrentados por nossos ancestrais nos últimos 2 milhões de anos".
A enxurrada de certezas que se segue a esse rompante introdutório é peça representativa do novo fundamentalismo. Como um vazamento de óleo no mar, a tintura evolucionária se espalha por todos os poros e recantos da experiência humana. O tom de triunfalismo, deslumbrado e peremptório, é inconfundível. Tudo o que ainda não foi "explicado" -e não sobrou muito!-, seguramente vai sê-lo em breve.
Se o homem busca, desde os tempos imemoriais, o sentido da sua existência, então (como nos garante o biólogo francês Jacques Monod) "eu tenho muito pouca dúvida de que essa necessidade imperiosa se desenvolve espontaneamente, de que ela é inata, inscrita em algum lugar no código genético". Não deve andar longe o dia em que o teorema de Gödel, os quartetos de Beethoven e a "Bhagavad Gita" hindu finalmente renderão os segredos de sua criação ao poder irresistível da mancha evolucionária triunfante...
Duvidar é um dever científico. Seria absurdo negar que avanços recentes no campo da genética e da macrobiologia estão permitindo esclarecer pontos obscuros da nossa psicologia e modo de ser. O grande equívoco é transformar um programa de pesquisa num credo truculento e abrangente.
Há uma enorme e fundamental distância entre as hipóteses e conjecturas de uma disciplina acadêmica especializada, de um lado, e uma visão de mundo totalizante, supostamente capaz de reduzir todas as dimensões da vida e da experiência humanas aos seus próprios termos e princípios explicativos, de outro. As heresias do neodarwinismo são instigantes e bem-vindas. Mas a superstição fundamentalista não passa de uma herdeira legítima do "marxismo científico".



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