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A ciência como superstição
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Nenhum pensador controla
os sentidos que se podem atribuir às suas idéias ou o uso que
os demais podem (ou não) fazer delas. A história da ciência
registra o caso de descobertas
fecundas que ficaram longamente adormecidas no solo estéril da negligência e do esquecimento. Foi o que aconteceu
com o pai da genética, o monge austríaco Gregor Mendel,
cujo trabalho seminal de 1865,
elucidando as leis da hereditariedade, permaneceu totalmente ignorado por mais de 30
anos.
Outro risco, mais frequente, é
a deturpação deliberada ou
inadvertida. As relações entre
filosofia e poder, por exemplo,
são um laboratório incomparável de metamorfoses monstruosas e mutações inusitadas
na apropriação de idéias
alheias. Sempre foi reconfortante saber que as melhores inteligências do passado endossariam os nossos atos, justificariam os nossos compromissos e continuam firmes do nosso lado.
Stálin invocou Marx, Hitler
invocou Nietzsche, Nixon invocou Keynes, FHC invocou
Weber. É pena que não se tenha inventado ainda um dispositivo anti-sequestro capaz
de proteger os nomes e o pensamento dos grandes clássicos
de políticos e governantes ávidos de lustro e boa consciência.
"A autoridade dos mortos", dizia Machado de Assis, "não
aflige e é definitiva".
A frequência de eventos desse
tipo nas trocas intelectuais
-um fator constante na história das idéias- levou o biólogo inglês Thomas Huxley (o
"buldogue de Darwin") a postular uma lei geral: "O destino
de uma nova verdade é começar como heresia e terminar
como superstição". A grande
ironia é que agora são as heresias da macro (darwiniana) e
da microbiologia (molecular)
que parecem estar se tornando
verdadeiras superstições.
É possível que haja um pêndulo secreto nisso tudo -uma
espécie de retorno e vingança
secreta do recalcado.
Não faz muito tempo, o
"marxismo científico" prometia que somente com a superação da luta de classes, a eliminação do mercado competitivo
e a organização consciente da
produção social a humanidade
poderia conquistar o "reino da
liberdade" e "livrar-se dos últimos vestígios da sua animalidade" (Engels). A superabundância permitida pelo desenvolvimento das forças produtivas e o domínio crescente da
natureza seriam o passaporte
da nossa "liberdade biológica".
Um "novo homem" estava
prestes a nascer.
Sustentando essa crença estava a noção de que o ser humano é produto da história, e
sua mente é dotada de ilimitada plasticidade. Quando chegamos ao mundo, somos todos
tão iguais quanto Fords produzidos numa linha de produção em massa, e nossa mente é
tão virgem e receptiva quanto
uma página em branco.
Afirmar a existência de uma
"natureza humana" era um
"preconceito burguês", e, no
afã de erradicar o "vírus ideológico" embutido no darwinismo, a "biologia proletária" de
Lisenko decretou o fim da
competição intra-espécie no
mundo natural.
Tudo isso, é claro, são águas
passadas. A fé no "marxismo
científico" anda em vias de extinção planetária e está cada
vez mais difícil encontrar
quem ainda se anime a sustentar que o software do meio sócio-cultural é tudo, o hardware da genética e da biologia
evolucionária é nada. Nem tudo é história. O espantoso, em
retrospecto, é que crenças como essas tenham povoado a
imaginação de tantos por tanto tempo.
O problema, contudo, é que o
pêndulo do acreditar parece
agora estar apresentando claros indícios de mover-se exageradamente na direção oposta.
A biologia que se imaginava
prestes a ser varrida para a
"lata de lixo da história", como
fruto espúrio de uma "ideologia burguesa", está de volta
para vingar as humilhações e o
descaso sofridos.
O resultado é que a heresia,
até certo ponto salutar, da reação naturalista aos excessos da
ortodoxia historicista ameaça
tornar-se, ela própria, uma vigorosa e insinuante superstição. Há um novo fundamentalismo no ar.
Para os adeptos do novo credo, não há nada no comportamento humano que um coquetel judicioso de "valor de sobrevivência" e "gene egoísta"
não seja capaz de explicar. Do
sorriso do recém-nascido ao
papel do cheiro na atração sexual, passando pelo uso de cosméticos durante a ovulação e
pelo consumo imoderado de
fast food à base de açúcar, sal e
gordura, há razões neodarwinistas para tudo. O animal humano é um fantoche preso aos
cordões invisíveis de atavismos
ancestrais e genes implacáveis
que o tiranizam em segredo.
Como pontifica a filósofa e
zoóloga britânica Helena Cronin, em artigo publicado no
número especial da "Time" dedicado à ciência que apareceu
no início do ano ("The New
Age of Discovery"): "Da última
década para cá, a teoria evolucionária colheu descobertas estonteantes: ela devassou
("pried open") a caixa de ferramentas metodicamente arranjada que é a nossa mente...
Nossas mentes e cérebros, tal
como os nossos corpos, foram
forjados pela seleção natural
para resolver problemas enfrentados por nossos ancestrais
nos últimos 2 milhões de
anos".
A enxurrada de certezas que
se segue a esse rompante introdutório é peça representativa
do novo fundamentalismo.
Como um vazamento de óleo
no mar, a tintura evolucionária se espalha por todos os poros e recantos da experiência
humana. O tom de triunfalismo, deslumbrado e peremptório, é inconfundível. Tudo o
que ainda não foi "explicado"
-e não sobrou muito!-, seguramente vai sê-lo em breve.
Se o homem busca, desde os
tempos imemoriais, o sentido
da sua existência, então (como
nos garante o biólogo francês
Jacques Monod) "eu tenho
muito pouca dúvida de que essa necessidade imperiosa se
desenvolve espontaneamente,
de que ela é inata, inscrita em
algum lugar no código genético". Não deve andar longe o
dia em que o teorema de Gödel, os quartetos de Beethoven
e a "Bhagavad Gita" hindu finalmente renderão os segredos
de sua criação ao poder irresistível da mancha evolucionária
triunfante...
Duvidar é um dever científico. Seria absurdo negar que
avanços recentes no campo da
genética e da macrobiologia
estão permitindo esclarecer
pontos obscuros da nossa psicologia e modo de ser. O grande equívoco é transformar um
programa de pesquisa num
credo truculento e abrangente.
Há uma enorme e fundamental distância entre as hipóteses e conjecturas de uma
disciplina acadêmica especializada, de um lado, e uma visão de mundo totalizante, supostamente capaz de reduzir
todas as dimensões da vida e
da experiência humanas aos
seus próprios termos e princípios explicativos, de outro. As
heresias do neodarwinismo
são instigantes e bem-vindas.
Mas a superstição fundamentalista não passa de uma herdeira legítima do "marxismo
científico".
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