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Autor de "Olga" e "Chatô" faz livro sobre organização que propagava invencibilidade japonesa
Baseada no interior paulista, a Shindô Remei matava imigrantes que acreditassem na derrota
Morais conta a "vitória" do Japão na 2ª Guerra
Folha Imagem
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O autor Fernando Morais |
MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO
Quando o imperador Hiroíto
jogou a toalha no dia 15 de agosto
de 1945, anunciando pelo rádio a
rendição do Japão, o país terminava a Segunda Guerra Mundial
humilhado pela tragédia suprema
de sua história. Para os milhares
de seguidores do Exército Imperial, em São Paulo, outra guerra
estava só começando.
Agrupados numa organização
fundamentalista chamada Shindô
Remei, imigrantes japoneses atacavam e matavam quem ousasse
alardear que o Japão fora derrotado. Para eles, os comandados do
imperador eram invencíveis.
Quem acreditasse no contrário, já
depois do triunfo dos aliados contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), era assassinado.
A Shindô Remei (Liga do Caminho dos Súditos, em japonês) começou a se organizar em 1943, radicalizou com o fim da guerra e,
em 1947, já tinha sido esfacelada
pela repressão policial.
Depois das biografias de Assis
Chateaubriand e Olga Benário, o
jornalista e escritor Fernando
Morais, 53, está prestes a pôr o
ponto final em seu novo livro, sobre a saga da Shindô. O contrato
com a Cia. das Letras prevê a entrega dos originais no mês que
vem. O lançamento será no segundo semestre. O título provisório é ""Corações Sujos", alcunha
dada aos ""derrotistas" que reconheciam o Japão batido.
De Paris, onde mora, Fernando
Morais falou à Folha sobre seu
novo mergulho na história.
Folha - O livro tem relação com o
seu projeto sobre personagens da
história do Brasil no século 20?
Fernando Morais - Sim. Ele deveria ser um dos temas do projeto
inicial chamado ""O Século dos Esquecidos". Quando comecei a
pesquisar, descobri que era muito
mais que um mero tema, mas
uma tremenda história.
Folha - Como anda o projeto?
Morais - Não sobreviveu com a
forma original, mas gerou ""Corações Sujos" e ainda deve render
mais dois outros livros.
Folha - Qual a história básica da
Shindô Remei?
Morais - Um grupo de imigrantes japoneses residente em São
Paulo no fim da Segunda Guerra
Mundial cria uma organização
fundamentalista. Composta por
representantes de todas as classes
sociais a Shindô sustentava que o
Japão não havia perdido a guerra.
Folha - E as notícias, as provas
existentes?
Morais - O que se lia e se ouvia
era, segundo eles, propaganda
aliada para quebrar o moral dos
japoneses. E eles decidem matar
os patrícios que acreditassem na
derrota do Japão. Matam dezenas
de pessoas em um ano de atividades. É uma história inacreditável.
Folha - Quantos foram mortos?
Morais - Os dados contabilizados pela polícia de São Paulo não
batem com os do Tribunal de Justiça, que, por sua vez, não batem
com os das delegacias municipais.
Estou com essa papelada para
tentar fechar o número exato.
O total de vítimas da Shindô
chega perto de cem pessoas, das
quais 23 foram mortas. Do lado
deles, o inventário é impressionante: quase 30 mil japoneses foram detidos e identificados, 1.500
foram presos formalmente, mil
foram indiciados e 80 tiveram sua
expulsão do Brasil decretada.
Folha - Como ocorriam os assassinatos?
Morais - Antes das execuções,
eles ofereciam à vítima a oportunidade de morrer dignamente:
em vez de ser morta, ela podia cometer o seppuku, o suicídio ritual,
desde que assinasse uma carta envergonhando-se de um dia ter colocado em dúvida a invencibilidade do Exército Imperial japonês.
Folha - E se não assinasse?
Morais - Quem não se matava
morria. E, deixando claro que não
se consideravam criminosos, mas
súditos fiéis do imperador, terminadas as execuções, eles se entregavam às autoridades.
Folha - Quem era o líder?
Morais - Um antigo coronel do
Exército japonês, Junji Kikawa.
No Brasil, ele era tintureiro.
Folha - Que outros personagens
se destacavam?
Morais - Os que mais me fascinam são os toko-tai, os jovens encarregados de executar os chamados ""traidores da pátria".
Havia uma certa solenidade na
ação deles, para cuja execução
enrolavam sobre o corpo, debaixo
da roupa, uma bandeira japonesa.
Uma vez executaram um imigrante que tinha sido oficial do
Exército no Japão. Mataram o sujeito a sangue frio, na sala de visitas da casa dele, na frente da mulher. Mas, antes de sair, se perfilaram e bateram continência para o
cadáver -que podia ter sido um
traidor, mas era um oficial.
Folha - O senhor encontrou algum sobrevivente da Shindô?
Morais - Em Tupã (SP), entrevistei um deles, Massao Honke.
Folha - Houve confrontos coletivos?
Morais - Não, embora em Tupã e
Oswaldo Cruz (SP) a situação tenha degenerado em duas ocasiões. Eles escolhiam a vítima,
destacavam um pelotão para eliminá-la e pronto. O primeiro
morto foi Ikuta Misobe, diretor de
uma cooperativa. No dia da rendição, ele fez uma circular, informando o fato aos empregados.
Sem saber, acabara de assinar sua
condenação à morte.
Folha - Por que esse episódio é
pouco conhecido no Brasil?
Morais - Mesmo entre meus
amigos japoneses das segunda e
terceira gerações, tem muita gente
que nunca tinha ouvido falar em
Shindô Remei. Como a comunidade se modernizou, acho que
eles têm constrangimento de mexer nessa história. Acho o desconforto que gerou o silêncio.
Folha - Existe ou existiu um pacto
de silêncio?
Morais - Pacto de silêncio eu não
sei. Mas que o assunto é tabu, não
tenho dúvida.
Folha - O sr. poderia falar sobre a
falsificação de uma edição da revista americana ""Life", informando
que o Japão vencera os aliados?
Morais - Não era apenas a ""Life"
que eles falsificavam, mas tudo o
que pudesse contribuir para colocar sob suspeita a versão oficial de
que o Japão perdera a guerra. Eu
tenho dinheiro falso feito por eles,
fotos falsas, havia estações de rádio clandestinas, transmitindo
notícias falsas em japonês.
Até uma versão da Fala do Trono foi feita por eles. As palavras
do imperador foram mudadas
para dar a impressão de que o Japão não havia perdido a guerra.
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