São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 2000


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Autor de "Olga" e "Chatô" faz livro sobre organização que propagava invencibilidade japonesa
Baseada no interior paulista, a Shindô Remei matava imigrantes que acreditassem na derrota
Morais conta a "vitória" do Japão na 2ª Guerra

Folha Imagem
O autor Fernando Morais


MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Quando o imperador Hiroíto jogou a toalha no dia 15 de agosto de 1945, anunciando pelo rádio a rendição do Japão, o país terminava a Segunda Guerra Mundial humilhado pela tragédia suprema de sua história. Para os milhares de seguidores do Exército Imperial, em São Paulo, outra guerra estava só começando.
Agrupados numa organização fundamentalista chamada Shindô Remei, imigrantes japoneses atacavam e matavam quem ousasse alardear que o Japão fora derrotado. Para eles, os comandados do imperador eram invencíveis. Quem acreditasse no contrário, já depois do triunfo dos aliados contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), era assassinado.
A Shindô Remei (Liga do Caminho dos Súditos, em japonês) começou a se organizar em 1943, radicalizou com o fim da guerra e, em 1947, já tinha sido esfacelada pela repressão policial.
Depois das biografias de Assis Chateaubriand e Olga Benário, o jornalista e escritor Fernando Morais, 53, está prestes a pôr o ponto final em seu novo livro, sobre a saga da Shindô. O contrato com a Cia. das Letras prevê a entrega dos originais no mês que vem. O lançamento será no segundo semestre. O título provisório é ""Corações Sujos", alcunha dada aos ""derrotistas" que reconheciam o Japão batido.
De Paris, onde mora, Fernando Morais falou à Folha sobre seu novo mergulho na história.

Folha - O livro tem relação com o seu projeto sobre personagens da história do Brasil no século 20?
Fernando Morais -
Sim. Ele deveria ser um dos temas do projeto inicial chamado ""O Século dos Esquecidos". Quando comecei a pesquisar, descobri que era muito mais que um mero tema, mas uma tremenda história.

Folha - Como anda o projeto?
Morais -
Não sobreviveu com a forma original, mas gerou ""Corações Sujos" e ainda deve render mais dois outros livros.

Folha - Qual a história básica da Shindô Remei?
Morais -
Um grupo de imigrantes japoneses residente em São Paulo no fim da Segunda Guerra Mundial cria uma organização fundamentalista. Composta por representantes de todas as classes sociais a Shindô sustentava que o Japão não havia perdido a guerra.

Folha - E as notícias, as provas existentes?
Morais -
O que se lia e se ouvia era, segundo eles, propaganda aliada para quebrar o moral dos japoneses. E eles decidem matar os patrícios que acreditassem na derrota do Japão. Matam dezenas de pessoas em um ano de atividades. É uma história inacreditável.

Folha - Quantos foram mortos?
Morais -
Os dados contabilizados pela polícia de São Paulo não batem com os do Tribunal de Justiça, que, por sua vez, não batem com os das delegacias municipais. Estou com essa papelada para tentar fechar o número exato.
O total de vítimas da Shindô chega perto de cem pessoas, das quais 23 foram mortas. Do lado deles, o inventário é impressionante: quase 30 mil japoneses foram detidos e identificados, 1.500 foram presos formalmente, mil foram indiciados e 80 tiveram sua expulsão do Brasil decretada.

Folha - Como ocorriam os assassinatos?
Morais -
Antes das execuções, eles ofereciam à vítima a oportunidade de morrer dignamente: em vez de ser morta, ela podia cometer o seppuku, o suicídio ritual, desde que assinasse uma carta envergonhando-se de um dia ter colocado em dúvida a invencibilidade do Exército Imperial japonês.

Folha - E se não assinasse?
Morais -
Quem não se matava morria. E, deixando claro que não se consideravam criminosos, mas súditos fiéis do imperador, terminadas as execuções, eles se entregavam às autoridades.

Folha - Quem era o líder?
Morais -
Um antigo coronel do Exército japonês, Junji Kikawa. No Brasil, ele era tintureiro.

Folha - Que outros personagens se destacavam?
Morais -
Os que mais me fascinam são os toko-tai, os jovens encarregados de executar os chamados ""traidores da pátria".
Havia uma certa solenidade na ação deles, para cuja execução enrolavam sobre o corpo, debaixo da roupa, uma bandeira japonesa. Uma vez executaram um imigrante que tinha sido oficial do Exército no Japão. Mataram o sujeito a sangue frio, na sala de visitas da casa dele, na frente da mulher. Mas, antes de sair, se perfilaram e bateram continência para o cadáver -que podia ter sido um traidor, mas era um oficial.

Folha - O senhor encontrou algum sobrevivente da Shindô?
Morais -
Em Tupã (SP), entrevistei um deles, Massao Honke.

Folha - Houve confrontos coletivos?
Morais -
Não, embora em Tupã e Oswaldo Cruz (SP) a situação tenha degenerado em duas ocasiões. Eles escolhiam a vítima, destacavam um pelotão para eliminá-la e pronto. O primeiro morto foi Ikuta Misobe, diretor de uma cooperativa. No dia da rendição, ele fez uma circular, informando o fato aos empregados. Sem saber, acabara de assinar sua condenação à morte.

Folha - Por que esse episódio é pouco conhecido no Brasil?
Morais -
Mesmo entre meus amigos japoneses das segunda e terceira gerações, tem muita gente que nunca tinha ouvido falar em Shindô Remei. Como a comunidade se modernizou, acho que eles têm constrangimento de mexer nessa história. Acho o desconforto que gerou o silêncio.

Folha - Existe ou existiu um pacto de silêncio?
Morais -
Pacto de silêncio eu não sei. Mas que o assunto é tabu, não tenho dúvida.

Folha - O sr. poderia falar sobre a falsificação de uma edição da revista americana ""Life", informando que o Japão vencera os aliados?
Morais -
Não era apenas a ""Life" que eles falsificavam, mas tudo o que pudesse contribuir para colocar sob suspeita a versão oficial de que o Japão perdera a guerra. Eu tenho dinheiro falso feito por eles, fotos falsas, havia estações de rádio clandestinas, transmitindo notícias falsas em japonês.
Até uma versão da Fala do Trono foi feita por eles. As palavras do imperador foram mudadas para dar a impressão de que o Japão não havia perdido a guerra.


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