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ARNALDO JABOR
Quem será meu escritor-fantasma na Internet?
Há um mês, está rolando na
Internet um texto atribuído
a mim, comparando a Adriane
Galisteu a uma médica chamada
Rosa Celia Barbosa, que eu não
conheço. Pelo texto que eu teria
escrito, a Adriane seria uma
"oportunista pós-moderna" por
sua ascensão na "mídia" e na
grana, enquanto a virtuosa doutora, descrita pelo meu "ghost
writer" como "baixinha, alagoana e pobre", teria subido na vida
pelo esforço honesto e solitário,
tornando-se uma heroína, um
exemplo a ser seguido nesses tempos cínicos.
Só que eu jamais escrevi esse
texto moralista e raso, opondo
duas pessoas como dois objetos,
julgando-as, para o bem e para o
mal, com a lepidez de inquisidores frívolos. E eu não perderia
tempo desmentindo-o, não fosse
ele um precioso exemplo de nossa
moralidade de classe média em
crise, com sua visão caolha dos
problemas brasileiros. Vamos então caçar meu escritor-fantasma.
Fascina-me de cara o imenso
sucesso do texto que eu não escrevi. Vagueia na Internet como um
vírus se reproduzindo, com recomendações ao pé de página de
que "passem adiante", tecendo
uma "corrente" de denúncias,
uma pirâmide de palavras "edificantes". Várias pessoas me falam
que "adoraram meu texto" e ficam pálidas de vergonha quando
digo que nunca o escrevi, decepcionadas com a própria gafe (e
comigo, porque o escrito talvez seja visto como minha "conversão"
ao mundo dos sentimentos óbvios). Ou seja, sou admirado pelo
que não sou.
E, aí, eu pergunto, como os policiais franceses: "A quem aproveita o crime?". Bem, certamente, lucra a doutora Rosa Celia Barbosa, virada em exemplo regenerador cibernético, pois, mesmo sem
suspeitar dela como autora em
causa própria, imagino-a satisfeita com os elogios do fantasma escritor. Quem então? Uma amiga
da médica, um admirador, uma
alma dedicada a usar o seu exemplo para fazer o bem, para corrigir o mundo?
Aí, tenho um sobressalto. Será
que o escritor-fantasma queria
me "corrigir" também, se arrogando o papel de benigno "cover"
de meu pobre estilo, "desinfetando-me", fazendo uma higiene de
meu detestável hábito de trabalhar com sobredeterminações, dúvidas, ambivalências, ironias? Eu
estaria "recuperado" se tivesse escrito aquilo? Talvez muitos dissessem com olhos em alvo e mãos
ao céu: "Ahhh... agora sim... o Jabor voltou ao rebanho dos maniqueístas e esquemáticos!". (Ai de
mim, talvez eu o seja mesmo, embora lutando para respeitar o
mistério das coisas...)
O tal cibertexto apócrifo tenta
imitar meu pobre estilo, mas sempre dividindo minhas idéias em
bem e mal, em branco contra preto. Não admite um leve tom de
cinza. Não quero bancar o impalpável, o "profundinho", mas a
única razão pela qual eu escrevo
(além de batalhar meu dinheirinho...) é porque quero pensar sobre o pensamento, para descobrir
o que eu mesmo estou pensando,
porque a coisa que mais combato
são as certezas, ideologismos,
crenças velhas que só atrasam este país, mesmo sendo ilusões generosas.
Estamos vivendo uma época de
incertezas (ohh!... os lugares-comuns a que esse tema me induz),
mas creio que a maior honestidade é dizer: "Não sei a resposta, estou perplexo!". Pouca gente suporta esse vazio; em geral, as pessoas atulham-no com rancores,
teorias conspiratórias, culpa dos
outros, jamais nos incluindo nos
problemas. Repito o que escrevi
há duas semanas: precisamos
acabar com o "eles" -os culpados- e o "nós" -os puros.
Interessa-me mostrar que o país
é tão ruim como nós, tanto as tais
"elites" escrotas quanto os pequenos-burgueses ignorantes que,
num círculo vicioso, acabam adotando o ponto de vista das citadas
"elites". Essa gente não entende
ironias, autocríticas -só denúncias e vitimizações. Adoram escavoucar ossadas, crimes antigos,
mas jamais as próprias loucuras
presentes. Essa gente não suporta
qualquer esperança no novo, apelidando-a de "ingenuidade" ou
"adesismo". Não aceitam que
possa haver algo de positivo no
mundo ou num governo. Não toleram ver que a culpa de nossa
tragédia nacional é uma estrutura de erros seculares em que estamos todos metidos.
Como escrevi há duas semanas
aqui, todo mundo quer ter razão,
pondo a culpa sempre em alguém, que pode ser o "imperialismo", a "globalização", "políticos"
abstratos, podendo um dia chegar
até aos negros, aos viados e aos
judeus, dependendo das conjunturas históricas, como já escrevi.
Além disso, aquele artiguinho
apócrifo com aparentes bons sentimentos abriga uma grande violência dissimulada. Violência é
julgar uma pessoa como a Adriane, porque ela é bonita e famosa,
como sendo uma cínica pecadora,
enquanto a doutora Rosa, "órfã,
alagoana de 1,50 m", seria o
"bem". A "santidade" pode ser
brutal... É visível ali a inveja batendo. Há um grande ódio ali
porque a Adriane deu uma entrevista na "Veja" em que dizia:
"Não quero saber do bem do outro. Só luto pelo meu bem. (...) Eu
confio mais nos bichos do que nas
pessoas. (...) Muita gente que convive comigo hoje virava a cara
quando eu estava por baixo. (...)
Elas podem até me usar, mas vou
usá-las também". O depoimento
de Adriane é cru, desencantado,
mas não é mentiroso; acaba sendo um interessante manual de sobrevivência na selva mercadológica.
Outra coisa que me fascina é o
caradurismo desse artigo. Nosso
indignado "ghost writer" fala da
necessidade da ética, da honestidade, por meio de um texto falso,
com uso indevido de meu nome,
de meu trabalho. Quem o escreveu criticando o "oportunismo"
de Adriane é ladrão de meu nome
e de meu estilo. Tecnicamente, é
um crime de falsidade ideológica,
mas quem o escreveu parece
achar que até "me faz um certo
bem" ou que eu não reclamaria,
já que o texto busca uma finalidade "honrada", tipo "os fins justificam os meios"...
Quem será a doutora Rosa Celia Barbosa, dita chefe de cardiologia de um pró-cardíaco do Rio?
Deve ser uma pessoa séria, não tenho dúvida. Assim, talvez devesse
vir a público dizer se sabe quem é
o escritor-fantasma da Internet, o
"cover" deste pobre homem que
vos fala.
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