São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 2000


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ARNALDO JABOR

Quem será meu escritor-fantasma na Internet?

Há um mês, está rolando na Internet um texto atribuído a mim, comparando a Adriane Galisteu a uma médica chamada Rosa Celia Barbosa, que eu não conheço. Pelo texto que eu teria escrito, a Adriane seria uma "oportunista pós-moderna" por sua ascensão na "mídia" e na grana, enquanto a virtuosa doutora, descrita pelo meu "ghost writer" como "baixinha, alagoana e pobre", teria subido na vida pelo esforço honesto e solitário, tornando-se uma heroína, um exemplo a ser seguido nesses tempos cínicos.
Só que eu jamais escrevi esse texto moralista e raso, opondo duas pessoas como dois objetos, julgando-as, para o bem e para o mal, com a lepidez de inquisidores frívolos. E eu não perderia tempo desmentindo-o, não fosse ele um precioso exemplo de nossa moralidade de classe média em crise, com sua visão caolha dos problemas brasileiros. Vamos então caçar meu escritor-fantasma.
Fascina-me de cara o imenso sucesso do texto que eu não escrevi. Vagueia na Internet como um vírus se reproduzindo, com recomendações ao pé de página de que "passem adiante", tecendo uma "corrente" de denúncias, uma pirâmide de palavras "edificantes". Várias pessoas me falam que "adoraram meu texto" e ficam pálidas de vergonha quando digo que nunca o escrevi, decepcionadas com a própria gafe (e comigo, porque o escrito talvez seja visto como minha "conversão" ao mundo dos sentimentos óbvios). Ou seja, sou admirado pelo que não sou.
E, aí, eu pergunto, como os policiais franceses: "A quem aproveita o crime?". Bem, certamente, lucra a doutora Rosa Celia Barbosa, virada em exemplo regenerador cibernético, pois, mesmo sem suspeitar dela como autora em causa própria, imagino-a satisfeita com os elogios do fantasma escritor. Quem então? Uma amiga da médica, um admirador, uma alma dedicada a usar o seu exemplo para fazer o bem, para corrigir o mundo?
Aí, tenho um sobressalto. Será que o escritor-fantasma queria me "corrigir" também, se arrogando o papel de benigno "cover" de meu pobre estilo, "desinfetando-me", fazendo uma higiene de meu detestável hábito de trabalhar com sobredeterminações, dúvidas, ambivalências, ironias? Eu estaria "recuperado" se tivesse escrito aquilo? Talvez muitos dissessem com olhos em alvo e mãos ao céu: "Ahhh... agora sim... o Jabor voltou ao rebanho dos maniqueístas e esquemáticos!". (Ai de mim, talvez eu o seja mesmo, embora lutando para respeitar o mistério das coisas...)
O tal cibertexto apócrifo tenta imitar meu pobre estilo, mas sempre dividindo minhas idéias em bem e mal, em branco contra preto. Não admite um leve tom de cinza. Não quero bancar o impalpável, o "profundinho", mas a única razão pela qual eu escrevo (além de batalhar meu dinheirinho...) é porque quero pensar sobre o pensamento, para descobrir o que eu mesmo estou pensando, porque a coisa que mais combato são as certezas, ideologismos, crenças velhas que só atrasam este país, mesmo sendo ilusões generosas.
Estamos vivendo uma época de incertezas (ohh!... os lugares-comuns a que esse tema me induz), mas creio que a maior honestidade é dizer: "Não sei a resposta, estou perplexo!". Pouca gente suporta esse vazio; em geral, as pessoas atulham-no com rancores, teorias conspiratórias, culpa dos outros, jamais nos incluindo nos problemas. Repito o que escrevi há duas semanas: precisamos acabar com o "eles" -os culpados- e o "nós" -os puros.
Interessa-me mostrar que o país é tão ruim como nós, tanto as tais "elites" escrotas quanto os pequenos-burgueses ignorantes que, num círculo vicioso, acabam adotando o ponto de vista das citadas "elites". Essa gente não entende ironias, autocríticas -só denúncias e vitimizações. Adoram escavoucar ossadas, crimes antigos, mas jamais as próprias loucuras presentes. Essa gente não suporta qualquer esperança no novo, apelidando-a de "ingenuidade" ou "adesismo". Não aceitam que possa haver algo de positivo no mundo ou num governo. Não toleram ver que a culpa de nossa tragédia nacional é uma estrutura de erros seculares em que estamos todos metidos.
Como escrevi há duas semanas aqui, todo mundo quer ter razão, pondo a culpa sempre em alguém, que pode ser o "imperialismo", a "globalização", "políticos" abstratos, podendo um dia chegar até aos negros, aos viados e aos judeus, dependendo das conjunturas históricas, como já escrevi.
Além disso, aquele artiguinho apócrifo com aparentes bons sentimentos abriga uma grande violência dissimulada. Violência é julgar uma pessoa como a Adriane, porque ela é bonita e famosa, como sendo uma cínica pecadora, enquanto a doutora Rosa, "órfã, alagoana de 1,50 m", seria o "bem". A "santidade" pode ser brutal... É visível ali a inveja batendo. Há um grande ódio ali porque a Adriane deu uma entrevista na "Veja" em que dizia: "Não quero saber do bem do outro. Só luto pelo meu bem. (...) Eu confio mais nos bichos do que nas pessoas. (...) Muita gente que convive comigo hoje virava a cara quando eu estava por baixo. (...) Elas podem até me usar, mas vou usá-las também". O depoimento de Adriane é cru, desencantado, mas não é mentiroso; acaba sendo um interessante manual de sobrevivência na selva mercadológica.
Outra coisa que me fascina é o caradurismo desse artigo. Nosso indignado "ghost writer" fala da necessidade da ética, da honestidade, por meio de um texto falso, com uso indevido de meu nome, de meu trabalho. Quem o escreveu criticando o "oportunismo" de Adriane é ladrão de meu nome e de meu estilo. Tecnicamente, é um crime de falsidade ideológica, mas quem o escreveu parece achar que até "me faz um certo bem" ou que eu não reclamaria, já que o texto busca uma finalidade "honrada", tipo "os fins justificam os meios"...
Quem será a doutora Rosa Celia Barbosa, dita chefe de cardiologia de um pró-cardíaco do Rio? Deve ser uma pessoa séria, não tenho dúvida. Assim, talvez devesse vir a público dizer se sabe quem é o escritor-fantasma da Internet, o "cover" deste pobre homem que vos fala.



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