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CARLOS HEITOR CONY
O pintor que foi jornalista e escritor
Uma das perguntas mais recorrentes que me fazem, em
cartas, e-mails e pessoalmente,
nos encontros promovidos com
estudantes, é sobre a relação entre
a literatura e o jornalismo -um
tema que, se não me engano, já
abordei perifericamente em outros artigos, pois preocupa muita
gente.
Há motivos para a curiosidade.
Afinal, tanto o jornalista como o
autor literário utilizam basicamente o mesmo instrumento, que
é o conjunto de letras que forma a
palavra e o conjunto de palavras
que forma a frase. Contudo, se o
instrumento é o mesmo, o uso e o
modo são diferentes, até mesmo
antagônicos. Há flores que enfeitam a vida, há flores que enfeitam
a morte -dizia o poeta. E sinos
que alegram as manhãs do Senhor são os mesmos que dobram
em finados.
Com perdão da imagem acima,
a flor e o sino, a palavra é material plástico demais, serve para
tudo e para nada. O jornalista dela se utiliza, primariamente, para
dar uma informação ou uma opinião. A previsão do tempo, a cotação do dólar, o cachorro que mordeu a criança, o político que vai
mudar de partido, o ator que foi
atropelado, o filme que fulano está fazendo, as alterações no Imposto de Renda, o novo vestido
que fulana vai usar -tudo isso é
informação e precisa de uma técnica e de um espaço próprios para
ser avaliada pelos editores e
transmitida ao leitor. No jornalismo atual, sem os vícios literários
de outros tempos, o texto tem de
ser profissional, obedecendo a critérios próprios. Daí que todos os
textos acabam se parecendo. E,
quanto mais parecidos, melhores
são, pois o que fica importando é
o conteúdo, o dólar em alta ou em
baixa, o político que faz isso ou
aquilo, o filme que custará tanto e
será bom ou mau.
Usando o mesmo material, a literatura dispensa qualquer contaminação com a realidade, com
o sonho, com as regras, com a utilidade. Como disse Sartre, a arte é
uma generosidade inútil. Se alguém se beneficia ou lucra com
ela, tudo bem. É um subproduto.
Sua finalidade é outra, despreza a
informação -chega mesmo a informar errado propositadamente- e não se obriga a emitir qualquer opinião. Seu objetivo é outro: o clima, o subjacente, o que
não é dito e muitas vezes nem
chega a ser insinuado, mas tem de
ser adivinhado pelo usuário.
Paralela a essa distinção de uso
e finalidade, jornalismo e literatura podem se conflitar e ajudar,
dependendo de diversas variantes. O mais comum é considerar o
jornalismo um modo de fazer literatura ou subordinar a literatura
a um modo do jornalismo. Em
ambos os casos, o produto é híbrido, não chega a ser boa literatura
nem bom jornalismo. Cada macaco no seu galho -acho que o
velho ditado nasceu de um escritor que fazia jornalismo ou o contrário, de um jornalista que tentava ser escritor.
Limitando a questão ao Brasil,
sua literatura e seu jornalismo, é
impressionante (e confuso) o número daqueles que exerceram,
eventual ou permanentemente,
as duas funções. Bem verdade
que, antigamente, jornalista era
todo aquele que escrevia em jornal: artigos, ensaios, comentários,
resenhas, crônicas, críticas e reportagens. Até hoje, quando se
diz que fulano é escritor e jornalista, a classificação de jornalista
fica por conta das colaborações
feitas nos jornais. Machado de
Assis e Carlos Drummond de Andrade sempre escreveram para
jornais, mas seriam incapazes de
fazer um lide, de condensar num
título o importante da informação ou da opinião.
Na realidade, como escritores,
eles se lixavam para a informação e a opinião. O que lhes importava era a visão de mundo que
haviam criado, o gosto ou desgosto da condição humana em sua
essência, e não em seus acidentes
factuais. Mas, para todos os efeitos, eram escritores e jornalistas.
Como em outras partes ao longo da história e da geografia, o
ofício de escritor geralmente não
dá para o sustento básico de cada
um. Swift foi juiz, Tolstói, fazendeiro no fim e soldado no início,
Kafka, bancário, Eça, diplomata,
Machado de Assis, funcionário.
Nada de mais que seja grande o
número daqueles que, não sendo
magistrados, fazendeiros, bancários, diplomatas e funcionários,
apelem para o ofício de jornalista
pelas afinidades periféricas da
função: lidam com as palavras,
formam frases e têm a impressão
de formar opinião, uma opinião
setorizada, sujeita a chuvas e trovoadas da circunstância e do sistema de poder em cada redação.
Já o escritor, mesmo que seja
jornalista profissionalizado, tem
o recurso usado por Goya, que
não era jornalista nem escritor,
mas pintor. Como artista contratado pelo rei da Espanha, ele pintava tudo o que lhe pediam, retratava o soberano, a rainha, os
príncipes, os folguedos da corte, as
grandes damas da época. Fora de
suas funções oficiais, ele conseguia expressar seu mundo interior, sua visão goyesca da vida
-e lá estão, na Quinta del Sordo,
seus dibujos famosos, Saturno devorando seu filho, o sonho da razão produzindo monstros.
Nos dois modos, ele usou o mesmo material: o desenho, a cor, o
quadro. E em ambos deixou a lava do vulcão que o consumia.
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