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São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O pintor que foi jornalista e escritor

Uma das perguntas mais recorrentes que me fazem, em cartas, e-mails e pessoalmente, nos encontros promovidos com estudantes, é sobre a relação entre a literatura e o jornalismo -um tema que, se não me engano, já abordei perifericamente em outros artigos, pois preocupa muita gente.
Há motivos para a curiosidade. Afinal, tanto o jornalista como o autor literário utilizam basicamente o mesmo instrumento, que é o conjunto de letras que forma a palavra e o conjunto de palavras que forma a frase. Contudo, se o instrumento é o mesmo, o uso e o modo são diferentes, até mesmo antagônicos. Há flores que enfeitam a vida, há flores que enfeitam a morte -dizia o poeta. E sinos que alegram as manhãs do Senhor são os mesmos que dobram em finados.
Com perdão da imagem acima, a flor e o sino, a palavra é material plástico demais, serve para tudo e para nada. O jornalista dela se utiliza, primariamente, para dar uma informação ou uma opinião. A previsão do tempo, a cotação do dólar, o cachorro que mordeu a criança, o político que vai mudar de partido, o ator que foi atropelado, o filme que fulano está fazendo, as alterações no Imposto de Renda, o novo vestido que fulana vai usar -tudo isso é informação e precisa de uma técnica e de um espaço próprios para ser avaliada pelos editores e transmitida ao leitor. No jornalismo atual, sem os vícios literários de outros tempos, o texto tem de ser profissional, obedecendo a critérios próprios. Daí que todos os textos acabam se parecendo. E, quanto mais parecidos, melhores são, pois o que fica importando é o conteúdo, o dólar em alta ou em baixa, o político que faz isso ou aquilo, o filme que custará tanto e será bom ou mau.
Usando o mesmo material, a literatura dispensa qualquer contaminação com a realidade, com o sonho, com as regras, com a utilidade. Como disse Sartre, a arte é uma generosidade inútil. Se alguém se beneficia ou lucra com ela, tudo bem. É um subproduto. Sua finalidade é outra, despreza a informação -chega mesmo a informar errado propositadamente- e não se obriga a emitir qualquer opinião. Seu objetivo é outro: o clima, o subjacente, o que não é dito e muitas vezes nem chega a ser insinuado, mas tem de ser adivinhado pelo usuário.
Paralela a essa distinção de uso e finalidade, jornalismo e literatura podem se conflitar e ajudar, dependendo de diversas variantes. O mais comum é considerar o jornalismo um modo de fazer literatura ou subordinar a literatura a um modo do jornalismo. Em ambos os casos, o produto é híbrido, não chega a ser boa literatura nem bom jornalismo. Cada macaco no seu galho -acho que o velho ditado nasceu de um escritor que fazia jornalismo ou o contrário, de um jornalista que tentava ser escritor.
Limitando a questão ao Brasil, sua literatura e seu jornalismo, é impressionante (e confuso) o número daqueles que exerceram, eventual ou permanentemente, as duas funções. Bem verdade que, antigamente, jornalista era todo aquele que escrevia em jornal: artigos, ensaios, comentários, resenhas, crônicas, críticas e reportagens. Até hoje, quando se diz que fulano é escritor e jornalista, a classificação de jornalista fica por conta das colaborações feitas nos jornais. Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade sempre escreveram para jornais, mas seriam incapazes de fazer um lide, de condensar num título o importante da informação ou da opinião.
Na realidade, como escritores, eles se lixavam para a informação e a opinião. O que lhes importava era a visão de mundo que haviam criado, o gosto ou desgosto da condição humana em sua essência, e não em seus acidentes factuais. Mas, para todos os efeitos, eram escritores e jornalistas.
Como em outras partes ao longo da história e da geografia, o ofício de escritor geralmente não dá para o sustento básico de cada um. Swift foi juiz, Tolstói, fazendeiro no fim e soldado no início, Kafka, bancário, Eça, diplomata, Machado de Assis, funcionário. Nada de mais que seja grande o número daqueles que, não sendo magistrados, fazendeiros, bancários, diplomatas e funcionários, apelem para o ofício de jornalista pelas afinidades periféricas da função: lidam com as palavras, formam frases e têm a impressão de formar opinião, uma opinião setorizada, sujeita a chuvas e trovoadas da circunstância e do sistema de poder em cada redação.
Já o escritor, mesmo que seja jornalista profissionalizado, tem o recurso usado por Goya, que não era jornalista nem escritor, mas pintor. Como artista contratado pelo rei da Espanha, ele pintava tudo o que lhe pediam, retratava o soberano, a rainha, os príncipes, os folguedos da corte, as grandes damas da época. Fora de suas funções oficiais, ele conseguia expressar seu mundo interior, sua visão goyesca da vida -e lá estão, na Quinta del Sordo, seus dibujos famosos, Saturno devorando seu filho, o sonho da razão produzindo monstros.
Nos dois modos, ele usou o mesmo material: o desenho, a cor, o quadro. E em ambos deixou a lava do vulcão que o consumia.


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