São Paulo, sábado, 23 de maio de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Mareado em terra firme


Os impasses morais dos romances de Conrad reaparecem com igual força na forma breve


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

QUANDO OS contos de "A Set of Six" (1908) viram a luz, Joseph Conrad (1857-1924) já era mais do que um oficial aposentado, 20 (movimentados) anos em veleiros, a serviço da marinha mercante inglesa, às suas costas.
Era um autor. De origem católica e polonesa, de família de patriotas resistentes à dominação russa, homens, a um só tempo, de armas e letras, ao abraçar os valores do império britânico à escrita, Conrad obrigou o figurino da imperturbabilidade moral do cavalheiro vitoriano e o convencionalismo literário correspondente a severos ajustes críticos. Ao lado das obras de Henry James, sua prosa figura na língua inglesa (que não era sua de berço, mas da qual soube se apropriar) como uma importante dobradiça entre a crueza realista do século 19 e a representação estilhaçada, em múltiplas camadas, do mundo no modernismo.
Pois quatro das seis histórias de 1908 ganham agora edição brasileira em "Um Anarquista e Outros Contos", deixadas inexplicavelmente de fora "O Duelo" (traduzido na coletânea "Mestre de Armas", Companhia das Letras, 2007) e "Gaspar Ruiz", longas, mas longe de dispensáveis.
A estreia literária de Conrad é tardia (aos 38 anos). À altura da publicação de "A Set of Six", no entanto, já era o autor consagrado de obras-primas, como "No Coração das Trevas" (1899), "Lord Jim" (1900), "Nostromo" (1904) e "O Agente Secreto" (1907). Os mesmo impasses morais e históricos representados nos romances (quase sempre, em torno de um breve episódio, estrategicamente escolhido, que ganha complexidade sob exame a partir de múltiplos pontos de vista) reaparecem aqui, com igual força, na forma breve.

Honra e decoro
O fascínio pelo mundo aventuresco, sobretudo dos mares, que o aproxima de Kipling e Stevenson, está em "A Bruta", história de uma embarcação amaldiçoada, insolitamente autônoma em sua renitência a ser domada pelos homens; o anacronismo da noção de honra e decoro individuais, tomados como bússolas éticas infalíveis, ganha contundência em "Il Conde", história do colapso de um gentil-homem na aprazível baía de Nápoles.
Testemunha direta dos horrores que o processo colonial e a arrogância civilizada podem gerar, deu-lhes representação artística exemplar em "O Informante", história de traição que se passa num círculo anarquista londrino, e "Um Anarquista", comédia de erros trágica que conduz um operário francês ao degredo e à prisão. Nos contos e nos romances, soube mostrar o abalo das verdades unívocas, claras, objetivas, aparentemente ao alcance da escolha moral correta, sob o peso de um mundo injusto, contingente e fragmentário.


UM ANARQUISTA E OUTROS CONTOS
Autor: Joseph Conrad
Tradução e organização: Dirceu Villa
Editora: Hedra
Quanto: R$ 16 (144 págs.)
Avaliação: ótimo



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