São Paulo, sexta-feira, 23 de junho de 2000


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Com só cinco cópias, "Cronicamente Inviável" recoloca o cinema no panorama cultural brasileiro
Sérgio Bianchi assume posto de terrorista do cinema nacional

Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem
Sérgio Bianchi, diretor de 'Cronicamente Inviável', que está em cartaz no Espaço Unibanco, em SP



Conheça o perfil do cineasta "maldito" que já levou mais de 40 mil pessoas para assistir seu último filme



MARIO SERGIO CONTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Na noite de segunda-feira passada, num auditório do terceiro andar da PUC de São Paulo, o cineasta Sérgio Bianchi defendeu o terrorismo como forma de ação política. "No Brasil, onde existe há centenas de anos uma exploração brutal, uma violência extraordinária, é preciso se indignar, é preciso se revoltar", disse ele. "O terrorismo é uma alternativa, temos de atacar aqueles que ferram o país." Ele falava a sério ou fazia uma provocação? Os olhos dos cerca de 200 estudantes estavam cravados em Sérgio Bianchi.
O cineasta não parece um terrorista. Mas é um tanto aterrorizante. Tem 55 anos, mede dois metros, pesa 103 quilos. Descendente de italianos e suíços, ele tem o porte de e é branco como uma geladeira. Seus olhos são grandes, vítreos, arregalados. Seus cabelos, desgrenhados, estão em transição do loiro para o grisalho. Seu bigodão lembra o de Stálin. Ele fala alto e enfatiza os argumentos agitando as mãos enormes de lá para cá, de cá para lá, e às vezes as aproxima demais do rosto do interlocutor.
Desde 1968, quando trocou o Paraná por São Paulo, Bianchi é tido nos meios culturais da cidade como um provocador. Um encrenqueiro. Um panfletário sem causa. Um diretor de filmes que poucos viram e pouquíssimos gostaram. Um autor maldito. Uma criatura dos subterrâneos da cinematografia marginal e do circuito gay barra-pesada.
Bianchi continua onde sempre esteve: à margem. Mas o seu último filme, "Cronicamente Inviável", colocou-o no centro do debate artístico. E recolocou o cinema no panorama cultural brasileiro, de onde ele estava ausente desde a estréia de "Central do Brasil".
Lançado com parca divulgação, para ficar no máximo duas semanas em cartaz, o filme já ultrapassou a barreira dos dois meses. Com apenas cinco cópias (duas em São Paulo, duas no Rio e uma em Curitiba), "Cronicamente Inviável" foi assistido por mais de 40 mil pessoas, a maioria delas jovens e sem o costume de ver filmes nacionais.
O sucesso do filme de Bianchi fez entrar areia nas engrenagens sucateadas do sistema cinematográfico brasileiro. O cinema nacional, relembre-se, foi espremido num gueto de duplo endereço: o Espaço Unibanco, na rua Augusta, em São Paulo, e o de Botafogo, no Rio. Apenas os filmes dos Trapalhões, de Xuxa e, às vezes, alguma outra produção para o público infantil conseguem ser exibidos fora dessas salas e das suas equivalentes nas grandes cidades brasileiras.
"Cronicamente Inviável" demonstrou ter potencial para extrapolar os limites do gueto. Todos os dias, Bianchi pressiona a distribuidora, a Riofilme. Pede mais cópias, quer que o filme seja exibido em outros cinemas. Não conseguiu nada. "O meu filme, que tem vocação para ser visto por um público dez vezes maior, está sendo impedido pela distribuidora de chegar ao tão decantado mercado", diz o diretor. "O "Cronicamente" atrapalhou os esquemas habituais de essa gente ganhar dinheiro, eles só lucram com o erro e o fracasso."
Sérgio Bianchi ocupa espaço e incomoda. Até pelo tamanho. Ou pelo jeito de estrangeiro. Ele mora num apartamento de dois quartos na praça da República, e, às vezes, mendigos pensam que é turista e lhe pedem esmola em inglês. Ele nasceu em Ponta Grossa, onde seu pai e seu avô eram fotógrafos. Com 16 anos, foi viver em Curitiba, na casa de uma tia, para prestar vestibular. Entrou em faculdades de ciências sociais e de economia, desistiu e, sem saber ao certo o que fazer, mudou para São Paulo.
Em 1969, começou a estudar cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP, a ECA, que então dava os seus primeiros e cambaleantes passos. Era um tempo de luto pela repressão política, de enaltecimento dos heróis do movimento antiditatorial. Foram também anos de liberação sexual e experimentação de drogas. Tempos, como se dizia então, de desbunde.
Bianchi foi contemporâneo na ECA do ator Nuno Leal Maia, dos futuros cineastas Djalma Batista (diretor de "Asa Branca"), Suzana Amaral ("A Hora da Estrela") e Aluísio Raulino ("Teremos Infância") e de Carlos Augusto Calil, que veio a ser presidente da Embrafilme. Alguns professores tinham ótimas intenções, como os cineastas Roberto Santos (de "A Grande Cidade") e Maurício Capovila ("O Profeta da Fome") e o escritor Rudá de Andrade. Outros eram críticos argutos e precoces, como o ensaísta Ismail Xavier.
As aulas, no entanto, eram bagunçadas. Havia um único professor com quem nenhum aluno tinha peito de fazer gracinhas: o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, que, naqueles anos, desenvolveu sua tese sobre a "situação colonial" do cinema brasileiro. Uma tese que vem sendo reconfirmada com o passar do tempo, em termos econômicos: há 20 anos, os filmes nacionais eram assistidos por 33% do público cinematográfico; hoje, a fatia do mercado do cinema brasileiro caiu para 3%.
Um colega de Bianchi lembra que a classe deles era particularmente desbundada. A maioria dos alunos era homossexual militante e levava suas bandeiras para os trabalhos escolares. Em determinado momento, a direção do Departamento de Cinema da ECA, em defesa da moral e dos bons costumes, cancelou todos os curtas-metragens que os estudantes deviam realizar.
Um dos curtas projetados, por exemplo, tinha o título "Seja Homo". Outro, que chegou a ser rodado, mostrava o ator Luiz Roberto Galizia, inteiramente nu, sendo untado com óleo tirado de latas de sardinha. Em seguida, um gato era solto sobre o ator e lambia o seu corpo furiosamente.
Bianchi viveu aqueles anos com intensidade, se apaixonando, brigando e curtindo avidamente o que a vida lhe oferecia. "Nem lembro como eu me sustentava", diz ele, "mas sei que nunca me prostituí". Ele deve ter batido um recorde: levou 20 anos para terminar o curso. Exaltado, estava sempre no bar da ECA, puxando discussão, desafiando. Era um personagem curioso, mesmo naquele período de tipos excêntricos: calçava botas até o joelho, nas quais enfiava as pernas de calças bufantes de veludo amarelo.
Nos intervalos entre os semestres letivos, e muitas vezes durante eles, gostava de viajar pelo Brasil. Sempre de ônibus. Além do cigarro e do álcool, mantinha-se longe das drogas. Bebia, e bebe, com relativa moderação. "Uma vez por semana, enfio o pé na jaca", diz.
"O Sérgio tinha jeito de que seria cineasta", lembra Ismail Xavier, que foi seu professor. "Ele era individualista, marcava presença na escola, queria criar imagens e passava ao largo do intelectualismo livresco e da militância política."
O futuro diretor, contudo, continuava indefinido quanto ao que fazer profissionalmente. Trabalhou como fotógrafo. Criou objetos artísticos e os expôs em galerias. Comprava móveis em antiquários e os revendia para madames. Foi ator em filmes dos colegas. Fez dois curtas-metragens ultraformalistas, sem diálogos, um deles, "Omnibus", inspirado num conto do autor argentino Julio Cortázar.
Ainda não se considerava um cineasta quando fez o seu primeiro longa-metragem, "Maldita Coincidência", com os atores Rodrigo Santiago, Sérgio Mamberti e Maria Alice Vergueiro. O filme se passava inteiramente num casarão abandonado da avenida Brigadeiro Luiz Antonio e mostrava várias tribos (hippies, militantes de esquerda etc.) convivendo em paz até que o lixo que eles produzem começa a atrapalhar a movimentação de todos na mansão. O filme ficou menos de uma semana em cartaz.
Já decidido a ser diretor, Bianchi voltou para Curitiba, onde achava que seria mais fácil conseguir verba para filmar. Logo se desentendeu com o secretário estadual da Cultura. Sem o cineasta entender direito por que, um belo dia um jornal local publicou uma manchete informando que Bianchi havia batido no secretário com uma barra de ferro.
Não obstante, o diretor conseguiu uma verba equivalente a R$ 300 mil, em valores de hoje. Mas precisava fazer um trabalho que jamais cogitara: um documentário sobre índios. Foi uma feliz coincidência. Ele descobriu que tinha queda para documentarista e, ao contrário da lengalenga habitual (a de mostrar a entediados espectadores que os bons selvagens são vítimas de homens brancos maus), confrontou um cacique, revirou as tripas do problema, botou os dedos nas feridas. Foi agressivo e panfletário: foi Sérgio Bianchi. Nasceu o média-metragem "Mato Eles?", que granjeou algum renome para o diretor -e também um processo pela Lei de Segurança Nacional, a LSN.
O diretor fez outros dois longas-metragens, "Romance" e "A Causa Secreta", este último baseado em Machado de Assis. Para financiá-los, antagonizou-se com burocratas da cultura estatal, diretores de marketing de grandes empresas e supostos mecenas. Para filmá-los, atritou-se com técnicos, câmeras, cenógrafos, iluminadores, continuístas e assistentes variados. Sua fama, entre as equipes de produção, é a de diretor tirânico e irascível. Na hora da exibição dos filmes, brigava com os distribuidores. Quando lançados, era a vez de se atritar com críticos e jornalistas. Bianchi é um mestre na gentil arte de fazer inimigos.
O sucesso de "Cronicamente Inviável" o deixou um pouco atordoado. Não que ele tenha sido engolido ou, muito menos, se vendido. Ou que seu filme tenha dado o salto qualitativo da condição de força produtiva estética para a de mercadoria barata de consumo acrítico. Mas, depois de tantos anos resignado ao perfil de maldito, ele tem dificuldade em lidar com elogios e aplausos e os encara com uma ponta de desconfiança.
Contribui para o seu atordoamento a indefinição de qual filme fará agora. Pensou em escrever um roteiro de uma história na qual tudo dá certo. "Como se Deus descesse à Terra e resolvesse todos os problemas sociais e individuais", diz. Também cogita fazer um filme sobre o órgão sexual masculino. "São idéias que podem redundar em filmes muito engraçados", diz Bianchi. Engraçados e, sem dúvida, provocativos.


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