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"CRONICAMENTE INVIÁVEL"
Para Roberto Schwarz, Sérgio Bianchi "apresenta a desigualdade social como intolerável"
Filme reacende debate de arte e política
DA REPORTAGEM LOCAL
Pela natureza do público que
vem atraindo, pela repercussão
crítica e pelas discussões que tem
provocado, "Cronicamente Inviável" já comprovou a sua relevância cultural. Em algumas sessões,
ele é aplaudido no final. Nos dois
debates feitos em São Paulo, um
na USP, durante a greve dos professores, e o de segunda-feira, na
PUC, as discussões foram acaloradas e inteligentes.
"Sérgio Bianchi fez um dos melhores filmes da década", diz Carlos Augusto Calil, professor de cinema da ECA. "Ele é um ataque
frontal e eficaz contra o Brasil
imaginado por um Darcy Ribeiro
ou um Gilberto Freyre." Para Calil, "Cronicamente Inviável" foi
lançado num momento propício:
aquele em que a incompetência
nacional, um dos temas do filme,
estava mais em evidência.
"Dias depois de o filme estrear,
o mundo todo pôde ver na televisão a polícia baiana batendo nos
índios durante a festa do Descobrimento", diz o ex-presidente da
Embrafilme, que já viu o filme
duas vezes. "Essa assombrosa demonstração da incompetência do
governo parecia ecoar uma sequência do "Cronicamente" em
que, sem motivo aparente, um índio é espancado por policiais."
A data de lançamento foi produto de um acaso histórico. O filme, fruto de uma idéia de Bianchi
e de sua amiga Bia Bracher, uma
das donas da editora 34, era para
ter ficado pronto em 1996. Bianchi atrasou quase cinco anos porque o dinheiro acabou, ele rompeu com a primeira produtora do
filme, se endividou e quase faliu.
As filmagens foram interrompidas três vezes. No total, o filme
custou R$ 1,5 milhão, um orçamento barato mesmo para os padrões brasileiros. Durante todo
esse tempo, o roteiro foi sendo
reescrito e adaptado às circunstâncias da produção, sempre conturbada. Com o copião pronto, o
sentido de algumas sequências foi
alterado durante a montagem.
Essa longa maturação pode ter
beneficiado Bianchi, que contou
com a colaboração decisiva de
dois jovens inventivos nas duas
pontas vitais da produção do filme: o roteirista Gustavo Steinberg
e o montador Paulo Sacramento.
"Talvez uma das maiores influências da minha contribuição
no roteiro venha de Foucault, que
mostra que o mal está em todas as
partes, em microesferas específicas de poder, com discursos próprios", diz Gustavo Steinberg, 26,
autor do romance "Prazeres da
Solidão".
Bianchi e Steinberg formam
uma dupla improvável. O cineasta tem um temperamento anárquico, é intuitivo e não reconhece
influências no seu trabalho, tanto
que não consegue dizer o nome
de um cineasta que admira.
Depois de parar para pensar,
concede que gosta do escritor argentino Julio Cortázar e do dramaturgo alemão Bertolt Brecht.
Já Steinberg tem formação erudita e teoriza com fluidez. No momento, ele está completando sua
tese na PUC sobre Internet e política. Com muita organização e
clareza, ele deu forma dramática a
algumas das idéias e intuições do
diretor.
"O Paulo Sacramento tem um
talento enorme", diz Sérgio Bianchi. "Ele vai ser um grande cineasta." Como "Cronicamente Inviável" é um filme que contrapõe cenas que criam sentidos novos e
inesperados, o trabalho de Sacramento foi decisivo. Talvez possa
ser comparado à montagem feita
por Lauro Escorel em "Terra em
Transe", de Glauber Rocha.
""Cronicamente Inviável" é o anti-"Central do Brasil'", diz o ensaísta Ismail Xavier, 53, também
ele professor da ECA. Enquanto o
filme de Walter Salles é otimista,
mostra um país integrado e admite a redenção, raciocina Xavier, o
de Bianchi é pessimista, sujo e não
apresenta soluções.
A comparação pode ser levada
adiante, sem que ela implique
exaltação de um filme em detrimento do outro, já que os dois
partem de pressupostos diferentes: "Central" enche os olhos, enternece e apela para as emoções
do espectador, ao passo que "Cronicamente" é agressivo, tem sequências desagradáveis de assistir
e, acidamente, fala à inteligência
do público, obriga-o a pensar.
"Numa época em que boa parte
dos cineastas faz filmes arrumadinhos, seja para cativar o público
brasileiro acostumado a assistir
filmes americanos ou então para
ganhar prêmios no exterior, é ótimo que surja um filme contundente como o de Bianchi, com a
ambição de expor e de discutir
questões relevantes para o país",
completa Xavier.
No debate na USP, discutiu-se
se o filme era de esquerda, por escarafunchar as mazelas nacionais,
ou de direita, por nelas se comprazer gostosamente, com bom
humor.
Para o crítico literário Roberto
Schwarz, que assistiu ao filme
quatro vezes e participou do debate, a questão colocada por
"Cronicamente Inviável" é outra.
"O tema do filme é a desigualdade social, na medida em que tudo
o que acontece na narrativa é decorrência dela", diz ele. "A desigualdade social é apresentada como uma realidade abjeta, que degrada e distorce mentalmente
tanto os de cima como os de baixo." Os ricos do filme são pessoas
de um cinismo abjeto, de uma
crueldade absurda. Os pobres,
por sua vez, se conformam de maneira abjeta com a exploração ou
então se revoltam estupidamente
contra ela.
"O filme certamente não é de direita, não trata a miséria como um
mundo cão, um programa de auditório fascistóide", afirma
Schwarz. "Ao contrário, ele apresenta a desigualdade social como
intolerável e, como diz o título, inviável."
Para Carlos Augusto Calil,
"Cronicamente" não é de direita
nem de esquerda. "O filme expressa uma indignação moral, ele
é pré-político", diz.
Essa indignação com o Brasil intratável da desigualdade é exposta
de maneira ácida. Há crianças miseráveis disputando brinquedos a
tapas, para delícia da madame
que os presenteou. Há pobres
atropelados, brigas de trânsito,
assaltos, mulatos sendo revistados a poder de cacetadas pela polícia, exploração sexual, mendigos
comendo em latas de lixo, venda
de crianças para adoção, prostituição, um personagem que faz a
apologia do trambique, outro que
ataca os nordestinos, uma humanista defendendo que o Estado
distribua crack para meninos de
rua, um sociólogo que vive do tráfico de órgãos humanos, uma
protetora de índios que disputa o
espaço deles na mídia com os movimentos negros.
Esse festival de boçalidade social termina de maneira espantosa, com uma cena que destoa de
tudo o que se viu antes. "Cronicamente Inviável" apresenta, no
fim, uma sequência de grande
ambiguidade.
Para alguns, ela mostra os excluídos da sociedade como depositários de uma dignidade desaparecida; um final, se não feliz, ao
menos positivo. Para outros, o fecho da fita, ao contrário, mostra o
triunfo sinistro da alienação. O filme de Sérgio Bianchi é provocativo até a derradeira cena. Ou sobretudo nela.
(MARIO SERGIO CONTI)
Filme: Cronicamente Inviável
Diretor: Sérgio Bianchi
Produção: Brasil, 2000
Com: Umberto Magnani, Cecil Thiré,
Betty Gofman, Daniel Dantas, Dira Paes
Onde: Espaço Unibanco de Cinema, sala
3 (r. Augusta, 1.470, centro de São Paulo)
Horário: desde 16h. Sáb.: 16h, 18h e 20h
Quanto: R$ 9 (seg. a qui.: R$ 6)
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