São Paulo, sexta-feira, 23 de junho de 2000


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"CRONICAMENTE INVIÁVEL"
Para Roberto Schwarz, Sérgio Bianchi "apresenta a desigualdade social como intolerável"
Filme reacende debate de arte e política

DA REPORTAGEM LOCAL

Pela natureza do público que vem atraindo, pela repercussão crítica e pelas discussões que tem provocado, "Cronicamente Inviável" já comprovou a sua relevância cultural. Em algumas sessões, ele é aplaudido no final. Nos dois debates feitos em São Paulo, um na USP, durante a greve dos professores, e o de segunda-feira, na PUC, as discussões foram acaloradas e inteligentes.
"Sérgio Bianchi fez um dos melhores filmes da década", diz Carlos Augusto Calil, professor de cinema da ECA. "Ele é um ataque frontal e eficaz contra o Brasil imaginado por um Darcy Ribeiro ou um Gilberto Freyre." Para Calil, "Cronicamente Inviável" foi lançado num momento propício: aquele em que a incompetência nacional, um dos temas do filme, estava mais em evidência.
"Dias depois de o filme estrear, o mundo todo pôde ver na televisão a polícia baiana batendo nos índios durante a festa do Descobrimento", diz o ex-presidente da Embrafilme, que já viu o filme duas vezes. "Essa assombrosa demonstração da incompetência do governo parecia ecoar uma sequência do "Cronicamente" em que, sem motivo aparente, um índio é espancado por policiais."
A data de lançamento foi produto de um acaso histórico. O filme, fruto de uma idéia de Bianchi e de sua amiga Bia Bracher, uma das donas da editora 34, era para ter ficado pronto em 1996. Bianchi atrasou quase cinco anos porque o dinheiro acabou, ele rompeu com a primeira produtora do filme, se endividou e quase faliu.
As filmagens foram interrompidas três vezes. No total, o filme custou R$ 1,5 milhão, um orçamento barato mesmo para os padrões brasileiros. Durante todo esse tempo, o roteiro foi sendo reescrito e adaptado às circunstâncias da produção, sempre conturbada. Com o copião pronto, o sentido de algumas sequências foi alterado durante a montagem.
Essa longa maturação pode ter beneficiado Bianchi, que contou com a colaboração decisiva de dois jovens inventivos nas duas pontas vitais da produção do filme: o roteirista Gustavo Steinberg e o montador Paulo Sacramento.
"Talvez uma das maiores influências da minha contribuição no roteiro venha de Foucault, que mostra que o mal está em todas as partes, em microesferas específicas de poder, com discursos próprios", diz Gustavo Steinberg, 26, autor do romance "Prazeres da Solidão".
Bianchi e Steinberg formam uma dupla improvável. O cineasta tem um temperamento anárquico, é intuitivo e não reconhece influências no seu trabalho, tanto que não consegue dizer o nome de um cineasta que admira.
Depois de parar para pensar, concede que gosta do escritor argentino Julio Cortázar e do dramaturgo alemão Bertolt Brecht.
Já Steinberg tem formação erudita e teoriza com fluidez. No momento, ele está completando sua tese na PUC sobre Internet e política. Com muita organização e clareza, ele deu forma dramática a algumas das idéias e intuições do diretor.
"O Paulo Sacramento tem um talento enorme", diz Sérgio Bianchi. "Ele vai ser um grande cineasta." Como "Cronicamente Inviável" é um filme que contrapõe cenas que criam sentidos novos e inesperados, o trabalho de Sacramento foi decisivo. Talvez possa ser comparado à montagem feita por Lauro Escorel em "Terra em Transe", de Glauber Rocha.
""Cronicamente Inviável" é o anti-"Central do Brasil'", diz o ensaísta Ismail Xavier, 53, também ele professor da ECA. Enquanto o filme de Walter Salles é otimista, mostra um país integrado e admite a redenção, raciocina Xavier, o de Bianchi é pessimista, sujo e não apresenta soluções.
A comparação pode ser levada adiante, sem que ela implique exaltação de um filme em detrimento do outro, já que os dois partem de pressupostos diferentes: "Central" enche os olhos, enternece e apela para as emoções do espectador, ao passo que "Cronicamente" é agressivo, tem sequências desagradáveis de assistir e, acidamente, fala à inteligência do público, obriga-o a pensar.
"Numa época em que boa parte dos cineastas faz filmes arrumadinhos, seja para cativar o público brasileiro acostumado a assistir filmes americanos ou então para ganhar prêmios no exterior, é ótimo que surja um filme contundente como o de Bianchi, com a ambição de expor e de discutir questões relevantes para o país", completa Xavier.
No debate na USP, discutiu-se se o filme era de esquerda, por escarafunchar as mazelas nacionais, ou de direita, por nelas se comprazer gostosamente, com bom humor.
Para o crítico literário Roberto Schwarz, que assistiu ao filme quatro vezes e participou do debate, a questão colocada por "Cronicamente Inviável" é outra.
"O tema do filme é a desigualdade social, na medida em que tudo o que acontece na narrativa é decorrência dela", diz ele. "A desigualdade social é apresentada como uma realidade abjeta, que degrada e distorce mentalmente tanto os de cima como os de baixo." Os ricos do filme são pessoas de um cinismo abjeto, de uma crueldade absurda. Os pobres, por sua vez, se conformam de maneira abjeta com a exploração ou então se revoltam estupidamente contra ela.
"O filme certamente não é de direita, não trata a miséria como um mundo cão, um programa de auditório fascistóide", afirma Schwarz. "Ao contrário, ele apresenta a desigualdade social como intolerável e, como diz o título, inviável."
Para Carlos Augusto Calil, "Cronicamente" não é de direita nem de esquerda. "O filme expressa uma indignação moral, ele é pré-político", diz.
Essa indignação com o Brasil intratável da desigualdade é exposta de maneira ácida. Há crianças miseráveis disputando brinquedos a tapas, para delícia da madame que os presenteou. Há pobres atropelados, brigas de trânsito, assaltos, mulatos sendo revistados a poder de cacetadas pela polícia, exploração sexual, mendigos comendo em latas de lixo, venda de crianças para adoção, prostituição, um personagem que faz a apologia do trambique, outro que ataca os nordestinos, uma humanista defendendo que o Estado distribua crack para meninos de rua, um sociólogo que vive do tráfico de órgãos humanos, uma protetora de índios que disputa o espaço deles na mídia com os movimentos negros.
Esse festival de boçalidade social termina de maneira espantosa, com uma cena que destoa de tudo o que se viu antes. "Cronicamente Inviável" apresenta, no fim, uma sequência de grande ambiguidade.
Para alguns, ela mostra os excluídos da sociedade como depositários de uma dignidade desaparecida; um final, se não feliz, ao menos positivo. Para outros, o fecho da fita, ao contrário, mostra o triunfo sinistro da alienação. O filme de Sérgio Bianchi é provocativo até a derradeira cena. Ou sobretudo nela.
(MARIO SERGIO CONTI)

Filme: Cronicamente Inviável Diretor: Sérgio Bianchi Produção: Brasil, 2000 Com: Umberto Magnani, Cecil Thiré, Betty Gofman, Daniel Dantas, Dira Paes Onde: Espaço Unibanco de Cinema, sala 3 (r. Augusta, 1.470, centro de São Paulo) Horário: desde 16h. Sáb.: 16h, 18h e 20h Quanto: R$ 9 (seg. a qui.: R$ 6)

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