São Paulo, sexta-feira, 23 de junho de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
Pequena história de um grande estádio

Em termos de história é pouco. Mas, em se tratando de Brasil, um cinquentenário é sempre alguma coisa. Daí a celebração, mais do que justa, dos primeiros 50 anos do estádio Mário Filho, também conhecido como Maracanã, nome de um rio que atravessa o bairro homônimo, nos inícios geográficos da zona norte carioca.
Era um senhor terreno, na minha infância já estava desativado. Ali funcionara o Derby Club, que perdera importância quando, em 1926, parece, o Jockey Club fez seu hipódromo, na Gávea.
Lembro-me de uma festa da primavera que ali se realizou, umas bananeiras de papel crepom e uma charanga tocando marchinhas de Carnaval, moças de perna de fora dando um beijo nas crianças que chegavam em busca das maravilhas primaveris, que afinal ficavam reduzidas àquele beijo. Como sempre, eu esperava mais.
Até que Mário Filho, dono do "Jornal dos Sports", passou a lembrar todos os dias que o Brasil seria sede da Copa do Mundo, então chamada de Copa Jules Rimet, a primeira no pós-guerra. Em 1938, ela se realizara na França, fora ganha pela Itália. No ano seguinte, estourou o conflito mundial que duraria até 1945. E o Brasil sediaria a próxima, em 1950.
Não tínhamos estádios. Em São Paulo havia o Pacaembu, bom e confortável para a época. Mas, no Rio, então capital do país, o maior estádio era o do Vasco, com capacidade para 35 mil pessoas.
Como sempre, não havia dinheiro para a construção de um estádio maior e melhor. A idéia inicial foi fechar o campo do Vasco, cuja arquibancada tem a forma de U. Fechando-se a ferradura, caberiam mais cinco mil pessoas. Era pouco e era burro.
Mário clamava por um novo estádio, todos os dias, com aquele estilo saboroso, que seu irmão Nelson Rodrigues copiava sempre que podia. Até que o assunto bateu na Câmara do Distrito Federal, onde se reuniam os vereadores cariocas, na primeira legislatura municipal após a queda da ditadura do Estado Novo, que colocara todos os poderes legislativos em recesso.
Tivemos então uma briga de titãs entre os dois vereadores mais votados do Rio: Carlos Lacerda, futuro governador, e Ary Barroso, que era considerado o nosso compositor mais importante, com os filmes de Walt Disney universalizando seus sucessos, como "Aquarela do Brasil", "Na Baixa do Sapateiro", "Os Quindins de Yayá", "No Tabuleiro da Baiana" e outros.
Os dois pertenciam ao mesmo partido, a União Democrática Nacional (UDN), que tinha o prestígio de ter derrubado a ditadura de Vargas. Em tempo: uma das bobagens mais estúpidas, frequente nos críticos e especialistas de nossa música popular, é atribuir uma promiscuidade entre Ary Barroso e o Estado Novo.
Os sambas-exaltação não foram encomendas da propaganda ditatorial. E Ary formou entre os mineiros que ajudaram a derrubar o regime totalitário, filiando-se inclusive ao principal partido de oposição a Vargas.
A briga teve dois rounds. Primeiro, Lacerda torpedeou toda e qualquer idéia de se gastar dinheiro para a construção de um novo estádio. O do Vasco servia.
Ele achava que um estádio monumental, como o que estava sendo projetado, seria um natural aliado do próximo ditador, que disporia, como Hitler e Mussolini, de um cenário adequado para reunir a massa. Vargas se utilizava do campo do Vasco e ficara no poder por 15 anos. Com um estádio quatro vezes maior, ficaria por 60 anos.
Ary entrou com som e fúria, lutando para que o estádio fosse feito. E fosse feito no Maracanã, de acesso fácil, quase ao meio da cidade, equidistante da zona sul e da zona norte.
Derrotado no primeiro tempo, Lacerda sugeriu que o estádio fosse feito em Jacarepaguá. Ainda hoje, 50 anos depois, local longínquo pra burro.
Com sua oratória inflamada, já sendo considerado o maior orador da história do Brasil, Lacerda arrebanhou aliados, e o projeto ia para o brejo. Foi quando Ary deu um golpe de mestre, atraindo para sua idéia a bancada do Partido Comunista, que era a maior naquela legislatura, 18 vereadores, todos cassados quando o presidente Dutra promoveu o fechamento do registro eleitoral do partidão.
Entre os vereadores do PCB estavam nomes famosos, como Agildo Barata, o Barão de Itararé, Octávio Brandão, Lia Corrêa Dutra, Iguatemi Ramos e Campos da Paz.
A briga foi de cachorro grande. Lacerda era um grande orador. Com sua voz potente ele ajudaria a derrubar três presidentes da República (Vargas, Jânio e Jango).
Mas Ary não ficava atrás, sua voz rascante era a mais conhecida e imitada do rádio brasileiro, pois além de compositor número um, era o locutor esportivo mais conhecido dos brasileiros.
Venceu a partida. O estádio seria construído no Maracanã, ficou pronto uma semana antes do primeiro jogo da Copa do Mundo. Quando Didi fez o primeiro gol do novo estádio, num amistoso entre cariocas e paulistas, as arquibancadas ainda cheiravam a cimento fresco. E tremeram.


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