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LIVRO/LANÇAMENTO
"Abraçado ao Meu Rancor", do escritor João Antônio, que foi lançado em 1986, volta às livrarias
A dor no país dos tapinhas que não doem
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Um tapinha não dói? E um
soco-inglês no queixo? Uma
capoeira nos pulmões, um estilete
no estômago? Se o caro leitor cultiva a crença de que palavras já
não machucam, dê uma olhada
em "Abraçado ao Meu Rancor".
Dificilmente escapará da surra.
O livro do paulistano João Antônio -que chegou pela primeira
vez às lojas em 1986 e agora reaparece por iniciativa da Cosac &
Naify- reúne dez contos. Só uns
poucos trazem relatos de violência física. Mesmo assim, nada que
se compare à brutalidade de um
Rubem Fonseca.
Sangue, tiros, torturas desempenham papel secundário no universo ficcional de João Antônio. O
autor, que morreu em 1996, com
59 anos, prefere tratar de outra espécie de violência, a dos abismos
sociais.
Miseráveis de toda sorte
-prostitutas, cafetões, mendigos, bêbados errantes, moleques
de rua, subempregados, bandidos
de baixo quilate- acompanham
o escritor desde que, em 1963,
despontou como um dos melhores contistas do país.
À época, incentivado pelo editor Ênio Silveira (da Civilização
Brasileira), estreou com "Malagueta, Perus e Bacanaço", coletânea de 11 histórias que logo se tornou um clássico, traduzido para
oito idiomas. A narrativa que batizava o volume resgata, nos dizeres do próprio João Antônio, "as
andanças aluadas e cinzentas de
três vagabundos, malandros, viradores, quebrados, quebradinhos numa noite de São Paulo".
Os 20 livros publicados depois
("Leão-de-Chácara", "Malhação
do Judas Carioca", "Casa de Loucos"...) apenas alargaram a estrada que insistia em seguir pelas
margens da sociedade. De tal maneira que, nos compêndios de literatura, João Antônio cristalizou-se como o "estadista dos humilhados e ofendidos", o "arauto
dos deserdados".
Refletindo sobre o autor, outro
Antonio -o célebre crítico Antonio Candido- argumentou: uma
das principais contribuições da
ficção literária é "a possibilidade
de dar voz, de mostrar em pé de
igualdade os indivíduos de diferentes classes ou grupos". Nos
contos, novelas e romances, portanto, os marginalizados têm a
chance de reviver. Recuperam "o
teor de humanidade" que a exclusão social lhes tirou.
Para o Antonio crítico, o Antônio escritor permite justamente
isso: que os rejeitados "existam,
acima da triste realidade".
"Abraçado ao Meu Rancor"
-título extraído de um tango argentino- não foge à regra e deixa
o lúmpen passar. Estão ali a meretriz de pés sujos ("Mimi Fumeta,
boca de chupeta"), o flanelinha
decrépito ("velho cachaça, velho
chué!"), o juiz de futebol ("cachorrão!"), o sambista esquecido
e os jogadores de sinuca.
Não à toa, na dedicatória, o autor homenageia "o pioneiro" Lima Barreto (1881-1922), romancista carioca que se interessou por
personagens semelhantes.
A coletânea, porém, oferece
uma surpresa em relação à fauna
habitual de João Antônio. Desta
vez, há histórias que centram foco
na classe média: no publicitário
falastrão, no jornalista que frequenta as altas rodas, no sitiante à
procura de um empréstimo bancário. Em princípio, são vitoriosos -só que nem sempre o escritor os retrata assim. Ora cuida para que se sintam tão derrotados
quanto qualquer pé-de-chinelo.
Ora os submete à avaliação raivosa dos excluídos, que os chamam
de "sujeitinhos", "gajos", "tipos".
A raiva, aliás, pontua todos os
dez contos. Raiva contra as diferenças de classe, contra a degradação das cidades imposta pelo
furor capitalista, contra o mundo
de fantasias que a mídia vende.
"Não pode existir uma literatura
boazinha no Brasil atual", defendia João Antônio em 1984, dois
anos antes de lançar a coletânea.
"Precisamos é de uma literatura
possessa, que dê urros."
Nas 208 páginas de "Abraçado",
os urros acabam ecoando por
meio de uma linguagem francamente coloquial, "realista até o limite da reportagem" -para usar
a frase do crítico Alfredo Bosi, que
assina o prefácio do livro.
Complicado identificar, em
muitas das histórias, a origem dos
tantos ressentimentos. Quem, afinal, destila observações impiedosas -o autor-narrador ou os personagens? Propositadamente, a
voz de um se confunde com a dos
outros. Mesmo porque João Antônio nasceu e cresceu entre os
"merdunchos, os desvalidos"
num bairro operário da capital
paulista (depois, radicou-se no
Rio, mas não se distanciou dos
ambientes marginais).
Em 1960, um incêndio devastou
a casa onde morava e destruiu a
versão original de "Malagueta,
Perus e Bacanaço". Para animá-lo
a recomeçar o trabalho, o pai do
escritor -imigrante português,
dono de armazém- ordenou:
"Levante a cabeça, rapaz. Pobre
tem de fazer tudo duas vezes".
Quando "Abraçado" surgiu, resenhas de jornal apontaram problemas no livro: excessiva simplificação das relações sociais; lirismo beirando a pieguice; "amargura legítima" atrapalhando a
"transfiguração" artística; narrativa "moralista" conduzindo o leitor à empatia "esbofeteante", mas
pouco reflexiva.
São ressalvas de fato consideráveis -que, entretanto, não anulam o essencial: em "Abraçado", a
realidade importa menos que os
sentimentos. E sentimentos tendem, sim, ao reducionismo.
Tome-se o caso do flanelinha
que protagoniza o primeiro conto
da coletânea. Idoso, enfraquecido
pelo álcool, pergunta-se: por que
os motoristas não lhe dão gorjetas
se ele camela o dia inteiro, debaixo de sol e chuva, para guardar
carros alheios? Não encontra respostas satisfatórias. Ainda que
simples, a equação lhe dói como
"um paralelepípedo". Não dói?
Abraçado ao Meu Rancor
Autor: João Antônio
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 24 (208 págs.)
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