São Paulo, sábado, 23 de junho de 2001

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LIVRO/LANÇAMENTO

"Abraçado ao Meu Rancor", do escritor João Antônio, que foi lançado em 1986, volta às livrarias

A dor no país dos tapinhas que não doem

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Um tapinha não dói? E um soco-inglês no queixo? Uma capoeira nos pulmões, um estilete no estômago? Se o caro leitor cultiva a crença de que palavras já não machucam, dê uma olhada em "Abraçado ao Meu Rancor". Dificilmente escapará da surra.
O livro do paulistano João Antônio -que chegou pela primeira vez às lojas em 1986 e agora reaparece por iniciativa da Cosac & Naify- reúne dez contos. Só uns poucos trazem relatos de violência física. Mesmo assim, nada que se compare à brutalidade de um Rubem Fonseca.
Sangue, tiros, torturas desempenham papel secundário no universo ficcional de João Antônio. O autor, que morreu em 1996, com 59 anos, prefere tratar de outra espécie de violência, a dos abismos sociais.
Miseráveis de toda sorte -prostitutas, cafetões, mendigos, bêbados errantes, moleques de rua, subempregados, bandidos de baixo quilate- acompanham o escritor desde que, em 1963, despontou como um dos melhores contistas do país.
À época, incentivado pelo editor Ênio Silveira (da Civilização Brasileira), estreou com "Malagueta, Perus e Bacanaço", coletânea de 11 histórias que logo se tornou um clássico, traduzido para oito idiomas. A narrativa que batizava o volume resgata, nos dizeres do próprio João Antônio, "as andanças aluadas e cinzentas de três vagabundos, malandros, viradores, quebrados, quebradinhos numa noite de São Paulo".
Os 20 livros publicados depois ("Leão-de-Chácara", "Malhação do Judas Carioca", "Casa de Loucos"...) apenas alargaram a estrada que insistia em seguir pelas margens da sociedade. De tal maneira que, nos compêndios de literatura, João Antônio cristalizou-se como o "estadista dos humilhados e ofendidos", o "arauto dos deserdados".
Refletindo sobre o autor, outro Antonio -o célebre crítico Antonio Candido- argumentou: uma das principais contribuições da ficção literária é "a possibilidade de dar voz, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de diferentes classes ou grupos". Nos contos, novelas e romances, portanto, os marginalizados têm a chance de reviver. Recuperam "o teor de humanidade" que a exclusão social lhes tirou.
Para o Antonio crítico, o Antônio escritor permite justamente isso: que os rejeitados "existam, acima da triste realidade".
"Abraçado ao Meu Rancor" -título extraído de um tango argentino- não foge à regra e deixa o lúmpen passar. Estão ali a meretriz de pés sujos ("Mimi Fumeta, boca de chupeta"), o flanelinha decrépito ("velho cachaça, velho chué!"), o juiz de futebol ("cachorrão!"), o sambista esquecido e os jogadores de sinuca.
Não à toa, na dedicatória, o autor homenageia "o pioneiro" Lima Barreto (1881-1922), romancista carioca que se interessou por personagens semelhantes.
A coletânea, porém, oferece uma surpresa em relação à fauna habitual de João Antônio. Desta vez, há histórias que centram foco na classe média: no publicitário falastrão, no jornalista que frequenta as altas rodas, no sitiante à procura de um empréstimo bancário. Em princípio, são vitoriosos -só que nem sempre o escritor os retrata assim. Ora cuida para que se sintam tão derrotados quanto qualquer pé-de-chinelo. Ora os submete à avaliação raivosa dos excluídos, que os chamam de "sujeitinhos", "gajos", "tipos".
A raiva, aliás, pontua todos os dez contos. Raiva contra as diferenças de classe, contra a degradação das cidades imposta pelo furor capitalista, contra o mundo de fantasias que a mídia vende. "Não pode existir uma literatura boazinha no Brasil atual", defendia João Antônio em 1984, dois anos antes de lançar a coletânea. "Precisamos é de uma literatura possessa, que dê urros."
Nas 208 páginas de "Abraçado", os urros acabam ecoando por meio de uma linguagem francamente coloquial, "realista até o limite da reportagem" -para usar a frase do crítico Alfredo Bosi, que assina o prefácio do livro.
Complicado identificar, em muitas das histórias, a origem dos tantos ressentimentos. Quem, afinal, destila observações impiedosas -o autor-narrador ou os personagens? Propositadamente, a voz de um se confunde com a dos outros. Mesmo porque João Antônio nasceu e cresceu entre os "merdunchos, os desvalidos" num bairro operário da capital paulista (depois, radicou-se no Rio, mas não se distanciou dos ambientes marginais).
Em 1960, um incêndio devastou a casa onde morava e destruiu a versão original de "Malagueta, Perus e Bacanaço". Para animá-lo a recomeçar o trabalho, o pai do escritor -imigrante português, dono de armazém- ordenou: "Levante a cabeça, rapaz. Pobre tem de fazer tudo duas vezes".
Quando "Abraçado" surgiu, resenhas de jornal apontaram problemas no livro: excessiva simplificação das relações sociais; lirismo beirando a pieguice; "amargura legítima" atrapalhando a "transfiguração" artística; narrativa "moralista" conduzindo o leitor à empatia "esbofeteante", mas pouco reflexiva.
São ressalvas de fato consideráveis -que, entretanto, não anulam o essencial: em "Abraçado", a realidade importa menos que os sentimentos. E sentimentos tendem, sim, ao reducionismo.
Tome-se o caso do flanelinha que protagoniza o primeiro conto da coletânea. Idoso, enfraquecido pelo álcool, pergunta-se: por que os motoristas não lhe dão gorjetas se ele camela o dia inteiro, debaixo de sol e chuva, para guardar carros alheios? Não encontra respostas satisfatórias. Ainda que simples, a equação lhe dói como "um paralelepípedo". Não dói?


Abraçado ao Meu Rancor
    
Autor: João Antônio
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 24 (208 págs.)



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