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RESENHA DA SEMANA
O último dos homens
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O italiano Guido Morselli
(1912-1973) passou 20 anos
isolado numa vila que ele próprio havia construído nos arredores de Varese para escapar
aos ruídos dos homens. Conseguiu publicar alguns ensaios e
viu os seus romances serem recusados, um após o outro, por
várias editoras. Matou-se na
mesma noite em que, ao chegar
em casa, encontrou o manuscrito devolvido do último, "Dissipatio H.G.", que viria a ser considerado a sua obra-prima.
Um ano depois da morte de
Morselli, seus livros começaram
a ser publicados, um após o outro, por iniciativa da prestigiosa
Adelphi, alcançando considerável sucesso de crítica e público.
Entre eles: "Roma Senza Papa",
em que o autor imaginava uma
igreja que perdera a razão de ser,
"Contro-Passato Prossimo", em
que imaginava um desfecho diferente para a Primeira Guerra, e
"Divertimento 1889", em que
imaginava uma aventura amorosa do rei Umberto 1º.
Em todos, sobressaía a recriação lúdica do tempo e da história pela ficção. "Dissipatio H.G.
-°O Fim do Gênero Humano"
(1977), cujo título vem da versão
latina de um texto do grego que
teria caído nas mãos do narrador em uma de suas pesquisas, é
igualmente lúdico e pontuado
de humor, apesar de fazer uma
representação do inferno.
Ao desistir de se matar, um
homem se dá conta de que está
sozinho no mundo, foi abandonado pelos demais indivíduos
da sua espécie. Só restam os edifícios, os objetos e os outros animais. Os homens desapareceram sem violência ou explicação, simplesmente se evaporaram da Terra. O único vestígio
do desaparecimento é a própria
ausência. E o narrador é a estranha e inexplicável exceção.
Sozinho como um Robinson
Crusoé pós-industrial num filme de Antonioni, ele deambula
pela cidade e pelos campos, reflete sobre sua espécie, que "em
30 séculos desencadeou 5.000
guerras", e sobre a sua condição
de último dos homens. Faz a crítica da cultura, lembra-se do seu
passado, da passagem por uma
clínica psiquiátrica e do seu médico, morto esfaqueado numa
briga entre enfermeiros.
Ao encenar o desaparecimento da espécie humana, Morselli
tenta imaginar um contato impossível entre o homem e a natureza, sem a mediação da cultura, a situação paradoxal de um
homem testemunhando o fim
da história. Seu testemunho, porém, já é história. Ou seja, o homem não pode desaparecer aos
olhos do homem. E, nesse sentido, o romance é uma divertida
provocação.
É impossível se livrar da cultura, mesmo sozinho. A única saída é o solipsismo, fazer da história interior a história da humanidade: "A humanidade existia,
agora existo eu". E isso só pode
acontecer no instante em que o
homem, em vez de perceber
passivamente o mundo que o
cerca (em vez de aguardar notícias dos outros), passa a criá-lo.
Contra a passividade da espera da morte, mas também contra a hipocrisia social, contra o
realismo ingênuo (que acredita
na objetividade do tempo e do
espaço) e o psicologismo intimista que assolava a literatura
de sua época, Morselli toma o
partido radical da imaginação e
propõe uma alucinação: a coincidência do mundo interior com
o mundo exterior pela ação do
eu. "Não há senão o eu, e o eu
não é senão o meu." Uma solução ao mesmo tempo desesperada e cômica.
O mercado editorial decidiu
ler isso ao seu modo. Não é à toa
que o suicídio do autor tenha
marcado a súbita mudança do
juízo em relação à sua obra. O
solipsismo de Morselli resultou
numa criação literária original
cuja chave, infelizmente, acabou
sendo dada pela sua morte.
O suicídio do escritor permitiu
que o seu último romance fosse
lido como fantasia alegórica
própria do suicida. A situação
imaginada em "Dissipatio H.G."
pede o desaparecimento do narrador. Sua presença, como exceção, diante da ausência geral, é
grande demais, insuportável.
A ausência de alteridade reforça a consciência do narrador em
relação à sua própria presença.
É uma consciência incômoda,
insustentável. Ele não vê ninguém, mas está exposto como
uma presa. A ausência dos outros realça a visibilidade e a vulnerabilidade da sua presença. E
a morte do autor vem por fim
reduzir o que havia de mais inventivo nessa alegoria a uma explicação do suicídio.
Dissipatio H.G.
Autor: Guido Morselli
Tradutor: Maurício Santana Dias
Editora: Ateliê Editorial
Quanto: R$ 25 (168 págs.)
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