|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Viagem na família
Beatriz Bracher ocupa-se do dia seguinte de uma geração perdida, a que teve sua educação sob a opressão
|
DESDE A estréia na ficção, a autora dos romances "Azul e
Dura" (2002) e "Não Falei"
(2004), que também assina o roteiro
de "Cronicamente Inviável", o filme
de Sérgio Bianchi, ocupa-se do dia
seguinte de uma geração perdida: a
que teve sua educação prática e sentimental sob a opressão do regime
militar. "Antonio", personagem-título do último livro de Beatriz Bracher, ainda nem nasceu e já é um novelo de dúvidas e divisões, herdeiro
presumido de uma aristocracia decadente e de certa burguesia, brasileira e paulistana, urbana e atônita,
cujo charme intelectualizado é pouco, cínico e indiscreto.
Em compasso de espera, debruçado sobre um segredo doméstico, tabu que vem à tona, o futuro pai, Benjamin, revolve a memória familiar,
esconjurando o visgo de velhos fantasmas (o proibido proibir dos anos
60, o conservadorismo tacanho com
que ele rompia), empenhado em
limpar terreno para Antonio no
mundo de hoje. Ao menino que vai
nascer, antecipa-se uma história de
desencontros de classe, abismos geracionais e utopias esvaziadas que,
fazendo pó das certezas, exigem a
investigação silenciosa do pai.
"Antonio" é um romance de contraponto. Seu foco narrativo, cindido, é orquestrado por Benjamin, interlocutor interessado e mudo de
vozes testemunhais diversas, recompondo uma história nebulosa e
recalcada, através dos muitos depoimentos intercalados de Isabel, sua
avó viúva e internada, de Raul e Haroldo, melhores amigos do próprio
pai e do avô, Teodoro e Xavier, ambos mortos como sua mãe, Elenir. A
cisão formaliza a aspereza de um
diálogo travado por versões irreconciliáveis, ainda que se cruzem, sobre
as apostas arriscadas (uma vida mais
livre de balizas, radicalmente reinventada) de um casal e seus filhos,
nos anos 80, e o travo de melancolia
que recobre o desfecho de suas vidas, nos dias de hoje.
Origens e culpa
Narrar as origens é miragem que
atravessa origem, maturidade e estertores do romance. "Onde começou a culpa? Onde o caminho desandou?" são questões que convidam à saga familiar, pedem respostas tateantes nas quais a crise do indivíduo, assunto por excelência do
gênero, encrua em raízes coletivas,
ramifica às avessas, ganhando ares
de destino menos incompreensível
e disparatado. Elas movem Benjamim e o levam a descobrir um duplo de si entre os filhos do avô.
Se a arqueologia do passado acena com o alargamento da compreensão, ainda que labiríntica e
torturada, ameaça com o fantasma
do fatalismo, acomodação resignada no álibi dos reflexos ancestrais.
Como modelo narrativo, é um
exercício de morde-sopra, atraente
aos romancistas porque leva a ajuste de contas, incontornável e inconcluso, longe tanto da soma zero
quanto da falsa redenção. Clássico
na expressão, "Antonio" não simplifica, nem doura a pílula da experiência histórica recente.
ANTONIO
Autor: Beatriz Bracher
Editora: 34
Quanto: R$ 28 (192 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Crítica/ensaios: Naves alcança "espessura delicada" Índice
|