São Paulo, sábado, 23 de junho de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Viagem na família


Beatriz Bracher ocupa-se do dia seguinte de uma geração perdida, a que teve sua educação sob a opressão

DESDE A estréia na ficção, a autora dos romances "Azul e Dura" (2002) e "Não Falei" (2004), que também assina o roteiro de "Cronicamente Inviável", o filme de Sérgio Bianchi, ocupa-se do dia seguinte de uma geração perdida: a que teve sua educação prática e sentimental sob a opressão do regime militar. "Antonio", personagem-título do último livro de Beatriz Bracher, ainda nem nasceu e já é um novelo de dúvidas e divisões, herdeiro presumido de uma aristocracia decadente e de certa burguesia, brasileira e paulistana, urbana e atônita, cujo charme intelectualizado é pouco, cínico e indiscreto.
Em compasso de espera, debruçado sobre um segredo doméstico, tabu que vem à tona, o futuro pai, Benjamin, revolve a memória familiar, esconjurando o visgo de velhos fantasmas (o proibido proibir dos anos 60, o conservadorismo tacanho com que ele rompia), empenhado em limpar terreno para Antonio no mundo de hoje. Ao menino que vai nascer, antecipa-se uma história de desencontros de classe, abismos geracionais e utopias esvaziadas que, fazendo pó das certezas, exigem a investigação silenciosa do pai.
"Antonio" é um romance de contraponto. Seu foco narrativo, cindido, é orquestrado por Benjamin, interlocutor interessado e mudo de vozes testemunhais diversas, recompondo uma história nebulosa e recalcada, através dos muitos depoimentos intercalados de Isabel, sua avó viúva e internada, de Raul e Haroldo, melhores amigos do próprio pai e do avô, Teodoro e Xavier, ambos mortos como sua mãe, Elenir. A cisão formaliza a aspereza de um diálogo travado por versões irreconciliáveis, ainda que se cruzem, sobre as apostas arriscadas (uma vida mais livre de balizas, radicalmente reinventada) de um casal e seus filhos, nos anos 80, e o travo de melancolia que recobre o desfecho de suas vidas, nos dias de hoje.

Origens e culpa
Narrar as origens é miragem que atravessa origem, maturidade e estertores do romance. "Onde começou a culpa? Onde o caminho desandou?" são questões que convidam à saga familiar, pedem respostas tateantes nas quais a crise do indivíduo, assunto por excelência do gênero, encrua em raízes coletivas, ramifica às avessas, ganhando ares de destino menos incompreensível e disparatado. Elas movem Benjamim e o levam a descobrir um duplo de si entre os filhos do avô.
Se a arqueologia do passado acena com o alargamento da compreensão, ainda que labiríntica e torturada, ameaça com o fantasma do fatalismo, acomodação resignada no álibi dos reflexos ancestrais.
Como modelo narrativo, é um exercício de morde-sopra, atraente aos romancistas porque leva a ajuste de contas, incontornável e inconcluso, longe tanto da soma zero quanto da falsa redenção. Clássico na expressão, "Antonio" não simplifica, nem doura a pílula da experiência histórica recente.


ANTONIO
Autor:
Beatriz Bracher
Editora: 34
Quanto: R$ 28 (192 págs.)
Avaliação: bom


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