São Paulo, terça, 23 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DISCO - CRÍTICA
Bossa nova começa em Elizeth Cardoso

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Em 1958, Elizeth Cardoso (1920- 90) lançou um disco chamado "Canção do Amor Demais", que agora está saindo em CD pela primeira vez. É modo pouco óbvio de abrir as inevitáveis comemorações fonográficas que as gravadoras já prometem aos 40 anos de advento da bossa nova.
Sim, porque, embora Elizeth fosse anterior ao movimento e não se convertesse à maioria das novidades que a bossa vinha trazer, este disco é frequentemente definido como o momento de inauguração daquela nova etapa da MPB.
Todo o disco é composto por canções escritas por Tom Jobim e/ou Vinicius de Moraes -na maioria, por parcerias de ambos. Haviam se encontrado dois anos antes, quando foram compor juntos os sambas para a peça "Orfeu da Conceição", de Vinicius.
"Canção do Amor Demais" veio solidificar a primeira grande parceria do futuro movimento, mas nem é essa a maior característica capaz de inscrevê-lo como pedra fundadora da bossa nova.
É que ali se encontra a primeira gravação de um dos emblemas bossa-novistas, "Chega de Saudade" (de Tom e Vinicius). É onde aparece pela primeira vez o som do violão da mais completa tradução da bossa, o baiano João Gilberto, então com 31 anos.
Do disco de Elizeth sairiam, também, outros futuros standards: "Janelas Abertas", "Modinha", a faixa-título, "As Praias Desertas", "Serenata do Adeus", "Eu Não Existo sem Você", "Estrada Branca".
À ocasião, Elizeth não gozava um de seus auges, Tom e João eram quase desconhecidos e Vinicius, além de poeta, era diplomata. A estranha associação saiu por um selo minúsculo, em tiragem de 2.000 exemplares. Não se supunha o mito circundando.
A partir de seu lançamento, tudo correu rapidamente. Três meses depois, João gravou sua versão de "Chega de Saudade". Estava fundada a bossa nova.
Elizeth Cardoso, em "Canção do Amor Demais", passa à história tanto como agente quanto como figura acidental do momento de fundação. Consta que Elizeth e João não teriam se afinado bem no primeiro encontro, e isso é emblemático do instante de conflito que o seio da MPB já pressentia.
A gravação de "Chega de Saudade" por João, passando por cima da de Elizeth, é autêntico rolo compressor -a dama da canção seria, além de fundadora, primeira vítima da revolução.
Acontece que Elizeth não se prestava ao conformismo com que a maioria dos artistas da chamada velha guarda reagiria à jovem guarda da bossa nova.
Elizeth, embora se mantivesse para sempre fiel a preceitos antes aprendidos, encarou com firmeza as revoluções. Acompanhou a canção tradicional até se deparar com Tom e Vinicius. Quando tal aconteceu, fez sua canção tradicional se permear pela nova bossa.
Abriu os braços aos sambistas de morro marginalizados -Cartola, Nelson Cavaquinho- e aos que começavam a aflorar -Paulinho da Viola. Conseguiu, em 68, reunir num show e disco os fronts tradicional (Jacob do Bandolim) e bossa-novista (Zimbo Trio).
E assim seguiu uma trilha de tensão entre os novos valores e os que ela, involuntariamente, ajudou a sepultar. Seu papel era, entretanto, o de pairar sobre as tensões. Em especial pelo flagrante esquizofrênico que ela protagoniza em "Canção do Amor Demais", Elizeth se fez por isso praticamente única na história da MPB.
Com ela, haveria apenas uma outra figura de atividade tão ou mais importante como relativizadora das tensões entre tradição e evolução: Nara Leão, aquela que abriu ouvidos, sucessivamente, a canção tradicional, bossa nova, samba de morro, canção de protesto, jovem guarda, tropicália.
Bem, as obras dessas artífices de atemporalidade se encontram picotadas em CD -poucos de seus trabalhos originais encontram-se fora dos formatos coletânea.
Ainda assim, a volta de "Canção do Amor Demais" (injustificavelmente acondicionada em cretina capa adulterada) abre uma primeira brecha para que se possa entender as passagens de tempo na MPB pelo intermédio inteligente de figuras demonstradoras de que os agentes da história podem se destacar da história em si.

Disco: Canção do Amor Demais Artista: Elizeth Cardoso Lançamento: Festa/Movieplay Quanto: R$ 18, em média


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.