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DISCO - CRÍTICA
Bossa nova começa em Elizeth Cardoso
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
Em 1958, Elizeth Cardoso (1920-
90) lançou um disco chamado
"Canção do Amor Demais", que
agora está saindo em CD pela primeira vez. É modo pouco óbvio de
abrir as inevitáveis comemorações
fonográficas que as gravadoras já
prometem aos 40 anos de advento
da bossa nova.
Sim, porque, embora Elizeth
fosse anterior ao movimento e não
se convertesse à maioria das novidades que a bossa vinha trazer, este disco é frequentemente definido
como o momento de inauguração
daquela nova etapa da MPB.
Todo o disco é composto por
canções escritas por Tom Jobim
e/ou Vinicius de Moraes -na
maioria, por parcerias de ambos.
Haviam se encontrado dois anos
antes, quando foram compor juntos os sambas para a peça "Orfeu
da Conceição", de Vinicius.
"Canção do Amor Demais"
veio solidificar a primeira grande
parceria do futuro movimento,
mas nem é essa a maior característica capaz de inscrevê-lo como pedra fundadora da bossa nova.
É que ali se encontra a primeira
gravação de um dos emblemas
bossa-novistas, "Chega de Saudade" (de Tom e Vinicius). É onde
aparece pela primeira vez o som
do violão da mais completa tradução da bossa, o baiano João Gilberto, então com 31 anos.
Do disco de Elizeth sairiam,
também, outros futuros standards: "Janelas Abertas", "Modinha", a faixa-título, "As Praias
Desertas", "Serenata do Adeus",
"Eu Não Existo sem Você", "Estrada Branca".
À ocasião, Elizeth não gozava
um de seus auges, Tom e João
eram quase desconhecidos e Vinicius, além de poeta, era diplomata.
A estranha associação saiu por um
selo minúsculo, em tiragem de
2.000 exemplares. Não se supunha
o mito circundando.
A partir de seu lançamento, tudo
correu rapidamente. Três meses
depois, João gravou sua versão de
"Chega de Saudade". Estava fundada a bossa nova.
Elizeth Cardoso, em "Canção
do Amor Demais", passa à história tanto como agente quanto como figura acidental do momento
de fundação. Consta que Elizeth e
João não teriam se afinado bem no
primeiro encontro, e isso é emblemático do instante de conflito que
o seio da MPB já pressentia.
A gravação de "Chega de Saudade" por João, passando por cima
da de Elizeth, é autêntico rolo
compressor -a dama da canção
seria, além de fundadora, primeira vítima da revolução.
Acontece que Elizeth não se
prestava ao conformismo com
que a maioria dos artistas da chamada velha guarda reagiria à jovem guarda da bossa nova.
Elizeth, embora se mantivesse
para sempre fiel a preceitos antes
aprendidos, encarou com firmeza
as revoluções. Acompanhou a
canção tradicional até se deparar
com Tom e Vinicius. Quando tal
aconteceu, fez sua canção tradicional se permear pela nova bossa.
Abriu os braços aos sambistas de
morro marginalizados -Cartola,
Nelson Cavaquinho- e aos que
começavam a aflorar -Paulinho
da Viola. Conseguiu, em 68, reunir num show e disco os fronts tradicional (Jacob do Bandolim) e
bossa-novista (Zimbo Trio).
E assim seguiu uma trilha de tensão entre os novos valores e os que
ela, involuntariamente, ajudou a
sepultar. Seu papel era, entretanto, o de pairar sobre as tensões.
Em especial pelo flagrante esquizofrênico que ela protagoniza em
"Canção do Amor Demais", Elizeth se fez por isso praticamente
única na história da MPB.
Com ela, haveria apenas uma
outra figura de atividade tão ou
mais importante como relativizadora das tensões entre tradição e
evolução: Nara Leão, aquela que
abriu ouvidos, sucessivamente, a
canção tradicional, bossa nova,
samba de morro, canção de protesto, jovem guarda, tropicália.
Bem, as obras dessas artífices de
atemporalidade se encontram picotadas em CD -poucos de seus
trabalhos originais encontram-se
fora dos formatos coletânea.
Ainda assim, a volta de "Canção
do Amor Demais" (injustificavelmente acondicionada em cretina
capa adulterada) abre uma primeira brecha para que se possa entender as passagens de tempo na
MPB pelo intermédio inteligente
de figuras demonstradoras de que
os agentes da história podem se
destacar da história em si.
Disco: Canção do Amor Demais
Artista: Elizeth Cardoso
Lançamento: Festa/Movieplay
Quanto: R$ 18, em média
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