São Paulo, terça, 23 de junho de 1998

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Teses para o PT ler depois do Brasil x Noruega

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas


No ano passado, vários partidos de esquerda se reuniram em Vitória para formular uma frente ideológica sobre a crise brasileira.
Escrevi na época um texto com "17 teses" que, eu achava, podiam ser úteis para o debate. Meu amigo, o governador Cristovam Buarque, publicou um artigo em que respondia às minhas pobres teses, como se eu estivesse em busca de soluções, eu em crise ideológica, quando minha intenção era provocar dúvidas, até porque considero a "certeza" uma das doenças infantis da esquerda tradicional.
Agora, o PT está reunido para fazer um programa de governo. Volto com algumas perguntas. Sem auto-análise, o programa do PT pode ser apenas uma série de desejos irrealizáveis, uma profissão ingênua de fé, oração mística, um "pensamento desejante" ("wishful thinking") e, até, se bobear, oportunismo. Vamos lá, sem ironias.
Como governar sem maioria no Parlamento? Os partidos brasileiros são atrasados, movidos por interesses fisiológicos. Pergunto: como se aliar com eles em busca de votos no Congresso sem se poluir? FHC está "quebrando a cara" há três anos... (O PFL é pior que o PDT?) Como conciliar esse pragmatismo inevitável com a tradicional ânsia de pureza do PT, o que transformou o governo de Buaiz e Buarque num inferno de críticas e autocríticas?
Como seria a política econômica? Como reduzir o déficit público sem fazer as reformas no Estado? Como evitar a fuga de capitais? Respeitando as "regras" do jogo internacional ou as contrariando? Pagando compromissos ao capital ou decretando moratória? Como formular uma política industrial para nos proteger dos perigos do liberalismo selvagem, mas sem cair em enleios cartorais e protecionismos getulistas tardios?
Como reformular o sistema de saúde, a educação, o "custo Brasil" sem reforma fiscal? Sem dinheiro, como estimular exportações sem trazer inflação de volta? Como conviver com as estatais e suas castas? Como distinguir entre solidariedade e corporativismo reacionário? Como fazer a reforma agrária dentro do sistema jurídico e burocrático atual? Pela força? Pela revolução, como quer o maoísta Stedile?
Como dosar o gradualismo de um partido no poder com o radicalismo dos militantes? A eleição de Lula seria vista como uma irrupção revolucionária na democracia "burguesa" ou uma entrada no mundo político brasileiro real? Como dosar a complexidade do mundo com a eficácia das medidas sem cair nem no elogio excessivo da complexidade (como faz FHC) nem na sedução do simplismo para fugir das dificuldades?
Como lutar contra o neoliberalismo sem subestimá-lo, pois, como dizia Marx, é impossível ignorar a marcha material do mundo sem cair num idealismo babaca ou num voluntarismo ingênuo? Como criticar a infernal hegemonia dos interesses americanos sem usar pensamentos mágicos, sem delírios utópicos ou medidas paranóicas, sem lançar mão da "teoria conspiratória" da história, sem dar pretextos para novos fascismos caboclos como foi em 64?
Aí, sim, a conspiração real da reação política se faria de novo, pelo lobby dos interesses do "mercado" contrariado, pelo conluio entre gringos, milicos e picaretas. Ou seja, como lidar com o monstro, dentro dele? Como lutar contra ele sem irritá-lo a ponto de nos devorar, pois ele é, hoje, invencível e inevitável, sim, não adianta chorar.
E mais ainda: como ter a coragem de ver "coisas boas" no mundo do mercado global? Ou seja, como admitir que, talvez, uma injeção de um pouco de "anglo-saxonismo" poderia ser útil para combater alguns vícios seculares, tais como o patrimonialismo e seus derivados, clientelismo, dependência do Estado etc.?
Como aceitar que esses vícios são tão maléficos como a desigualdade de classes, o imperialismo e outros? Não esquecer no programa que o atraso brasileiro tem também raízes quase "antropológicas", vícios que atacam o próprio pensamento dito "progressista". Como entender que a culpa não é só dos outros, mas da gente também?
Como ter a coragem de até admirar a democracia americana e seu processo interno, pois os USA foram um dos países que mais mudaram "endogenamente": "civil rights", luta contra a guerra (o ataque ao Iraque acabou de ser evitado por universitários de Ohio, esculhambando ao vivo Madeleine Albright e William Cohen)?
Será que o capitalismo global é apenas peste negra ou pode trazer possíveis avanços, como, digamos, os antibióticos? Como entender que pode haver inesperados progressos na história torta, mas concreta, por exemplo: o "milagre" escroto brasileiro criou o ABC, que criou o PT?
Como mudar palavras? Esquecer velhos clichês, como o "Homem", a "Totalidade", o "Povo", a "Realidade Brasileira" (qual delas?), o "Futuro" e incluir novos termos, como "sobredeterminação" (no sentido de Freud retomado por Althusser), "coextensividade", "contingência", "ambivalência", "parcialidades"?
Como entender que o Sim pode ser, às vezes, mais progressista que o Não? Como entender que o negativismo pode ser, às vezes, conformista? Difícil, não é? Dá medo... Como assumir dúvidas sem medo de parecer "vacilante" ou "cooptado"? Como aceitar que o fracasso do socialismo não foi devido só a um "complô da CIA", mas também por erros terríveis e crimes inconfessáveis?
Como entender melhor o pensamento de Marx, que dizia que se chegava ao "simples pela aceitação do complexo e não por sua pura negação"? Ou seja, como formular uma política popular de esquerda sem a idéia morta, do século 19, de "revolução"? (Eu tremo ao dizê-lo, como se cometesse um sacrilégio...)
Como evitar que a idéia de "bem do povo" nos iluda, nos faça esquecer a pobreza de meios para atingi-lo? Como evitar as "utopias regressivas", com sonhos zapatistas ou trotskistas? Não esquecer que o mundo nos ensinou que a idéia de "totalidade", de tudo controlar, de tudo organizar, é um fio de navalha, pertinho do totalitarismo.
E mais: como levar em conta o incessante desejo humano -o inconsciente, o sadismo, a repressão sexual-, que criou a fome de poder, a "nova classe", os crimes em nome do "bem", que destroçou a ilusão da fácil solidariedade e da fraternidade, os mais ralos sentimentos humanos? Tema para auto-análise: "Estou lutando pelo bem do povo, com minhas juras de amor, ou vivendo às custas dele?".
Como evitar que o charme santo do "finalismo" e da "boa consciência", que a beleza dos objetivos (justiça, progresso, etc...) nos faça descuidar dos meios práticos e possíveis para atingi-los?
Aí estão alguns tópicos para ajudar no programa do PT. Espero que alguém leia, depois do Brasil x Noruega.



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