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ANÁLISE
Salvaram-se os melhores
JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A GRAMADO
"Vida de Menina" mereceu
o prêmio de melhor longa-metragem em Gramado, não
por ser um filme excepcional, mas
por ser o mais "redondo" da competição, ou seja, aquele em que todos os elementos (história, dramaturgia, imagem, ritmo, decupagem) estão a serviço de um sólido princípio diretor.
É um filme delicado, baseado
num livro precioso ("Minha Vida
de Menina", de Helena Morley),
que retrata, pelos olhos de uma
garota, a vida cotidiana em Diamantina no final do século 19.
É uma espécie de "história da vida privada" num momento crucial da formação do Brasil moderno. A escravidão acabara de ser
abolida, mas o trabalho livre não
havia sido ainda plenamente implantado, o que dava ensejo a
uma organização social um tanto
frouxa e propícia aos paradoxos e
mal-entendidos.
O local -uma região mineradora em franca decadência- parece deslocado no tempo, assim
como a protagonista Helena
(Ludmila Dayer, ótima), descendente de ingleses protestantes no
coração do Brasil católico.
Todo esse processo rico e contraditório de relações raciais, sociais e religiosas nos é apresentado de modo sutil e oblíquo pela
inteligência inquieta de Helena.
Sutileza e obliqüidade são os valores que comandam a organização do filme, desde o modo como
os episódios se constroem até a
orquestração dos olhares dos personagens, passando pela fotografia de Pedro Farkas, que capta de
maneira admirável a linda luz das
montanhas de Minas.
Há coincidências curiosas entre
"Vida de Menina" e "Filhas do
Vento", de Joel Zito Araújo. Ambos são ambientados em cidades
históricas mineiras, ambos têm
em seu centro personagens femininas, ambos tratam do destino
de descendentes de escravos.
Este último tema é abordado de
modo mais explícito e programático em "Filhas". É, digamos, a
"condição negra vista por dentro", mas acomodada numa dramaturgia e num ritmo mais próximos da telenovela.
Em "Vida de Menina", o tópico
da opressão racial é mais problematizado, uma vez que o que se
apresenta é o mal-estar de uma
parcela da elite dominante diante
da simples existência dos ex-escravos. O tom é de dúvida e perplexidade, sentimentos que talvez
persistam até hoje.
Os dois filmes dialogam entre si
e, de algum modo, se completam.
E estão, de fato, bem acima dos
outros concorrentes.
Na competição latina, a vitória
do uruguaio "Whisky" não chega
a ser uma surpresa, embora muita
gente desse como certa a vitória
de "Suite Habana".
Os dois são ótimos, mas extremamente díspares. "Whisky"
narra com humor astuto e extrema economia de meios a disputa
surda entre dois irmãos judeus de
meia-idade. "Suite Habana" expõe o cotidiano de cubanos de várias idades e condições sociais, orquestrando as imagens documentais de acordo com princípios temáticos, rítmicos e plásticos.
Uma espécie de Dziga Vertov
com malemolência latina.
Se o cubano é um afresco, o uruguaio é uma miniatura. Se o primeiro é uma sinfonia, o segundo é
um concerto de câmara.
Gramado, no fim das contas,
valeu por esses quatro filmes, pelo
documentário "O Cárcere e a
Rua" e por dois ou três curtas.
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