São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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ENTREVISTA LUIZ CARLOS BARRETO

Com a estréia de seu 62º filme, produtor repassa a carreira de 46 anos no cinema

"Dos filmes que fiz, gosto até dos fracassos"

QUANDO SE pergunta a Luiz Carlos Barreto qual dos 62 títulos que produziu ele não faria de novo, a resposta é: "Dos filmes que fiz, gosto até dos fracassos".
A paixão incondicional pelas obras começou depois dos 30, quando abandonou o emprego de fotógrafo da revista "O Cruzeiro" durante a cobertura da vinda do presidente francês Charles De Gaulle ao Brasil, para se dedicar a fazer filmes. Não parou mais. Na semana passada, cruzou o país divulgando "O Homem que Desafiou o Diabo". E abriu uma brecha para falar à Folha.

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Nos últimos sete dias, a agenda de Luiz Carlos Barreto apontava compromissos em quatro Estados e três ocasiões em que ele acordaria numa cidade e iria dormir em outra.
Nos últimos 46 anos, a vida de Barreto teve 61 semanas assim. São os períodos em que ele avisa a quem estiver na outra ponta dos telefones (atualmente, carrega sempre dois celulares no bolso): "Estamos em plena campanha de lançamento do filme. Estou pelo Brasil".
O título da vez, o 62º realizado pelo selo Produções Cinematográficas L.C. Barreto & Filmes do Equador, é "O Homem que Desafiou o Diabo". O longa tem direção de Moacyr Goes, Marcos Palmeira como o destemido e picaresco herói e lançamento nacional marcado para a próxima sexta-feira.
"Não quero dizer que você vai morrer, mas esse é seu filme-testamento como produtor", julgou o cineasta Cacá Diegues, ao terminar de assisti-lo, em sessão particular, ao lado de Luiz Carlos, como ele é chamado pelos amigos. Os demais o tratam por Barretão.

Imortal
Aos 79 anos, Barreto não pensa mesmo em morrer tão cedo. "Não tenho a pretensão de ser imortal, como o Roberto Marinho tinha. Mas não vejo a necessidade de um sucessor para o que faço", afirma o mais profícuo, mais polêmico, mais admirado e mais criticado produtor de cinema brasileiro.
Quanto a ter escrito com "O Homem que Desafiou o Diabo" um testamento -no sentido de o filme concentrar o tipo de representação do Nordeste e do homem nordestino que ele sempre quis ver nas telas- Barreto está de acordo com Cacá.
"O nordestino sobrevive a circunstâncias com as quais seria impossível lidar pela força de seu imaginário", afirma.
Sendo um de 11 filhos de uma família cearense que venceu no sul do país, Barreto poderia tomar a si mesmo como exemplo de sua tese. Mas prefere outro: "O que é o Lula, senão um produto da força do imaginário dele e de sua mãe? Até o nome ele mudou! É um Ojuara", diz.
Ojuara é a identidade que o protagonista de "O Homem que Desafiou o Diabo" inventa para si, quando se cansa de levar a vida como José Araújo.

"Charge ao vivo"
Barreto não trocou de nome, mas mudou de vida aos 35 anos. Assim como Ojuara, o episódio que disparou sua transformação foi o de uma humilhação, que ele julgou estar "velho demais para suportar".
Ele ia pela Cinelândia, com sua câmera fotográfica a tiracolo, cobrindo a visita ao país do general e presidente francês Charles de Gaulle. Era 1964, e Barreto atuava como repórter da revista "O Cruzeiro", que foi, como ele define, "a Globo em papel de sua época".
Quando viu De Gaulle e o marechal Castello Branco, presidente do Brasil (1964-67), desfilando em carro aberto, Barreto teve a impressão de estar diante de "uma charge ao vivo, com aquele tamboretezinho [Castello Branco] ao lado de um general que era um obelisco [De Gaulle]".
Enquanto buscava o melhor ângulo para fotografá-los, Barreto foi arremessado ao chão por dois policiais militares. No canteiro da Cinelândia, levantou-se, espanou o pó do terno e decidiu que era hora de ir "procurar a turma no cinema".

Glauber Rocha
A turma, a bem da verdade, já o havia encontrado. De uma visita a Glauber Rocha, na Bahia, onde o cineasta filmava "Barravento" (1962), Barreto extraiu a primeira capa de "O Cruzeiro" dedicada a um filme nacional. Um clique das atrizes Helena Ignez e Luíza Maranhão ocupou o lugar de destaque no qual as divas de Hollywood eram useiras e vezeiras.
Quando se mudou da Bahia para o Rio de Janeiro, Glauber foi morar na casa de Barreto e de lá articulou as relações que inicialmente transformaram o cicerone no fotógrafo que ajudou a reformular a imagem do cinema brasileiro -com "Vidas Secas" (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e "Terra em Transe" (Glauber Rocha, 1964)- e, em seguida, no produtor de todos os grandes nomes do cinema daquele período -Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Roberto Farias, Walter Lima Jr.
Lucy Barreto, mulher de Luiz Carlos, começou a atuar ao lado do marido na produção dos filmes, e os filhos do casal -Bruno, Fábio e Paula- cresceram em meio a moviolas, retalhos de filmes e intermináveis discussões cinematográficas.

"Família Titanic"
Era "inevitável", avalia o pai, que todos adotassem o métier -Bruno e Fábio são cineastas, Paula é produtora- e formassem o que ele chama de "uma família Titanic"; porque, em caso de naufrágio, ninguém escapa, já que estão todos no mesmo barco.
Nos anos 60, as reuniões da turma do cinema que animavam a casa dos Barreto eram perpassadas, segundo ele, pela adesão comum "a um projeto nacional de cinema, não a um projeto de cinema nacional".
Nos dias de hoje, "a coisa ficou mais pragmática", avalia Barreto, e, por isso, "menos concentrada do objetivo da auto-sustentabilidade, que deveria ser prioritário, porque não é possível ser eternamente dependente do Estado".
Mas, entre os jovens cineastas, Barreto observa também um hábito repetido -o de querer ser o que não são. "Querer ser Glauber prejudicou a carreira de muita gente", calcula.
Quando morava com Barreto, "Glauber escrevia e desenhava seus filmes, diariamente, das 4h às 10h. Em geral, trabalhava nu", lembra o produtor, seguro de que o cineasta "não era porra-louca; tinha grande senso de responsabilidade", ao contrário do que apregoa sua imagem pública.
"Essas lendas foram contaminando jovens cineastas. Embarcaram nessa de que poderiam ser Glauber se fossem livres, espontâneos", afirma.
O modelo "hoje em dia é aquela câmera solta, desestabilizada, que Fernando Meirelles domina com maestria e usa porque é necessário em seus filmes, e não como um modismo no qual estão querendo transformar esse recurso".
Que muitos queiram ser como Glauber ou Meirelles é algo que desafia a lógica das exceções, conclui o homem que ocupa um lugar singular na história do cinema brasileiro. "É como querer ser Garrincha ou Pelé. Mas não é todo dia que nascem Garrinchas e Pelés!"


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