São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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BIA ABRAMO

Sobreviventes do mundo do espetáculo


Novo reality show da CBS promove uma triste exibição de crianças treinadas pela mídia

"GRANDES PROGRAMAS de TV não nascem todos os dias, crianças, sim". A frase vem de um esquete criado cinco anos atrás pelo comediante Jamie Kennedy, em que dois executivos de TV apresentam a pais incrédulos seu projeto de um reality show. A paródia coincide com a popularidade dos programas de competição por sobrevivência, como "Survivor", e, claro, com o que passou pela cabeça de gente do lado de cá e do lado de lá da TV: "E se inventarem um reality show com, digamos, crianças"?
Pois a CBS inventou e conseguiu convencer 40 pais e mães, à base de um contrato leonino, a deixarem seus filhos participar. O primeiro episódio de "Kid Nation" foi ao ar na última quarta-feira. O vídeo promocional, amplamente divulgado, na TV e na internet, explica do que se trata: 40 crianças entre 8 e 15 anos, vivendo sem adultos em uma cidade cenográfica, Bonanza, por 40 dias.
À diferença dos reality shows adultos, elas não são eliminadas e podem ir para casa se quiserem. À semelhança, as crianças são divididas em grupos, têm que competir por privilégios, são instadas a querer ganhar prêmios em dinheiro e a inventar maneiras de se organizar e suprir suas necessidades básicas.
A emissora negou como pôde as críticas que, claro, começaram a pipocar aqui e ali. No meio dos talk shows mais ou menos indignados com denúncias de que algumas crianças teriam ingerido alvejante e uma outra teria queimado o rosto com gordura quente, além de outras, mais graves, de exploração de trabalho infantil, um espectador anônimo, num desses videocasts espalhados no YouTube, resumia o que deve ter animado a enfrentar a polêmica com "consciência limpa": "Uma mistura de "Survivor" e "O Senhor das Moscas", quem não vai querer ver?".
O comentarista refere-se ao romance de William Golding, que conta como um grupo de garotos sobrevive a um acidente aéreo e se vê numa ilha deserta. O impacto do livro consiste em acompanhar a deterioração dos valores civilizatórios dentro de um grupo homogêneo e, em tese, menos afetado pelo mal por ser constituído de crianças. É esquemático, mas lá ainda estamos no reino da elaboração literária, onde, mesmo que os personagens cheguem a extremos da experiência, não passam de criações mentais .
Em "Kid Nation", nem mesmo essa distinção será possível. O espetáculo de crianças treinadas pela mídia e para a mídia já é, em si, muito triste. Junta-se a isso a perversidade intrínseca do reality show, que conduz pessoas reais a se transformarem em simulacros de suas personalidades e aí temos um problema bem maior do que uma intoxicação por ingestão de cloro.


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