|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"O PRIMEIRO DIA" - CRÍTICA
Filme dá saudade de um Brasil
CONTARDO CALLIGARIS
Colunista da Folha
"O Primeiro Dia" resolveu o
problema de minha última noite.
Como muitos, eu estava me perguntando o que fazer no réveillon.
Afinal, é fim de século e virada de
milênio. Não dá para não celebrar. Mas celebrar o quê? Como e
onde?
Graças a Walter Salles e Daniela
Thomas, agora sei: quero passar o
réveillon no telhado do edifício do
Leme (acho que é no Leme) onde
festejam Maria e João (Fernanda
Torres e Luis Carlos Vasconcellos). Aquele telhado do Leme será meu lugar no dia 31 - onde
quer que de fato eu esteja à meia-noite.
Como todo mundo, estarei esperando para celebrar o novo milênio. Ou seja, acreditarei na virada, como o "vovô" no presídio
(Nelson Sargento) para quem,
dessa vez, com quatro números
que mudam, o mundo vai ter de
renascer: "O certo vai virar errado
e o errado vai virar certo".
Ou como Pedro (Carlos Vereza), o companheiro de Maria, para quem "se há um dia na vida para se decidir alguma coisa este dia
é hoje -final de milênio". Com
isso, ele some, não se sabe por
quê: se dá um tiro por bancarrota,
se perde em alguma mata escura
bandeira adentro ou vai para Paris ver se escreve aquele romance
(suposições minhas).
Todos, em suma, torcemos com
eles para que a data seja um marco. Mas, se contamos os dias, as
horas e os segundos esperando a
queda da bola em Times Square
ou os fogos do Forte de Copacabana, se a cada ano queremos tanto acreditar nas viradas (ou no
mínimo fazer de conta que acreditamos), é banalmente porque a
vida dói. Dói no morro, dói no
presídio e dói no Leme. É necessário, aliás, um certo esforço para
acreditar que possa mudar. Maria
quem diga, ela que afirma que os
anos são todos iguais e que os réveillons são bobagens, mas laboriosamente ensina para seu aluno
surdo-mudo o jeito de dizer, logo
o quê? "Feliz ano novo."
Nessa dor de viver, três personagens (talvez quatro, contando
Pedro) mal se aguentam. Chico
(Matheus Nachtergaele), João e,
enfim, Maria cansaram de correr.
Os três poderiam se juntar para
lançar uma reza maldita a Deus,
um protesto, que no filme Chico
recita para todos.
João e Maria se encontram no
telhado do Leme e, por um momento, conseguem desistir de
querer acabar logo e de vez. Como
todos nós quando contamos os
segundos da meia-noite, eles voltam a acreditar no primeiro dia.
Maria chega ao telhado subindo
de seu apartamento de classe média. João vem da casa de detenção
e de uma fuga pela vida morro
abaixo. As diferenças que os separam se resolvem no mínimo denominador comum de solidão e
desamparo. O encontro, por fugaz que seja, devolve a ambos, por
um instante, a vontade de continuar.
Um verdadeiro encontro, aliás,
é sempre isso: a descoberta de
uma fragilidade comum. Também os verdadeiros encontros (de
todo tipo, amorosos ou não) justificam a esperança, fazem com que
valha a pena acreditar nas viradas
que talvez nunca cheguem. Por isso vale a pena passar o ano naquele telhado.
Mas para nós espectadores o
encontro não é com João ou com
Maria. Nosso encontro é com
uma imagem de nossas próprias
vidas que pode ser triste, mas nos
dá vontade de viver e dignidade
para isso. Walter Salles e Daniela
Thomas transformam as misérias
cotidianas em imagens, palavras,
histórias que valem a pena ser vividas porque mereceram ser narradas.
Se reconhecer na solidão silenciosa, indignada e fatal de João, no
desamparo de Maria ou na agitação maníaca de Chico é uma maneira de reconhecer que nossa banalidade sofrida é, de uma certa
forma, apetecível.
Os diretores do "Primeiro Dia"
conseguem isso à força de ternura. É por seu olhar apaixonado
(ou mesmo fascinado) que assistimos às nossas tribulações.
Certamente, o filme carrega a
esperança de um Brasil pacificado, onde as diferenças sociais se
resolvam em um encontro, ou seja, na descoberta do único patrimônio comum que valha: nossas
fragilidades.
Ora, falando em Brasil, não consigo esquecer um momento aparentemente marginal no filme. É
o episódio do farmacêutico (Nelson Sargento). Com um sorriso,
uma mentira e a promessa de pagar um táxi especial, Maria consegue convencê-lo a lhe vender sem
receita um sonífero de tarja preta.
Em um diálogo pudico e bonito,
o homem se dá conta que o propósito de Maria não é dormir ou
então é dormir além da conta. Firme e gentilmente, ele corta o trato.
Pouca ou nenhuma hipóstase
da lei, um pouco de corrupção, o
favor que reina e, como diria Chico, no fim o vermelhão se abala e
triunfa. Neste Brasil, dá para comprar barbitúrico sem receita mas,
se for para se suicidar, imagino
que nosso farmacêutico recusaria
- mesmo se Maria tivesse a receita. A cena me deu saudade.
Enfim, por informação: os diálogos são imperdíveis. Fernanda
Torres e Matheus Nachtergaele
também.
Avaliação:
Texto Anterior: Próximo filme vai tratar de vingança Próximo Texto: Joyce Pascowitch Índice
|