São Paulo, Sábado, 23 de Outubro de 1999
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"O PRIMEIRO DIA" - CRÍTICA
Filme dá saudade de um Brasil

CONTARDO CALLIGARIS
Colunista da Folha

"O Primeiro Dia" resolveu o problema de minha última noite. Como muitos, eu estava me perguntando o que fazer no réveillon. Afinal, é fim de século e virada de milênio. Não dá para não celebrar. Mas celebrar o quê? Como e onde?
Graças a Walter Salles e Daniela Thomas, agora sei: quero passar o réveillon no telhado do edifício do Leme (acho que é no Leme) onde festejam Maria e João (Fernanda Torres e Luis Carlos Vasconcellos). Aquele telhado do Leme será meu lugar no dia 31 - onde quer que de fato eu esteja à meia-noite.
Como todo mundo, estarei esperando para celebrar o novo milênio. Ou seja, acreditarei na virada, como o "vovô" no presídio (Nelson Sargento) para quem, dessa vez, com quatro números que mudam, o mundo vai ter de renascer: "O certo vai virar errado e o errado vai virar certo".
Ou como Pedro (Carlos Vereza), o companheiro de Maria, para quem "se há um dia na vida para se decidir alguma coisa este dia é hoje -final de milênio". Com isso, ele some, não se sabe por quê: se dá um tiro por bancarrota, se perde em alguma mata escura bandeira adentro ou vai para Paris ver se escreve aquele romance (suposições minhas).
Todos, em suma, torcemos com eles para que a data seja um marco. Mas, se contamos os dias, as horas e os segundos esperando a queda da bola em Times Square ou os fogos do Forte de Copacabana, se a cada ano queremos tanto acreditar nas viradas (ou no mínimo fazer de conta que acreditamos), é banalmente porque a vida dói. Dói no morro, dói no presídio e dói no Leme. É necessário, aliás, um certo esforço para acreditar que possa mudar. Maria quem diga, ela que afirma que os anos são todos iguais e que os réveillons são bobagens, mas laboriosamente ensina para seu aluno surdo-mudo o jeito de dizer, logo o quê? "Feliz ano novo."
Nessa dor de viver, três personagens (talvez quatro, contando Pedro) mal se aguentam. Chico (Matheus Nachtergaele), João e, enfim, Maria cansaram de correr. Os três poderiam se juntar para lançar uma reza maldita a Deus, um protesto, que no filme Chico recita para todos.
João e Maria se encontram no telhado do Leme e, por um momento, conseguem desistir de querer acabar logo e de vez. Como todos nós quando contamos os segundos da meia-noite, eles voltam a acreditar no primeiro dia.
Maria chega ao telhado subindo de seu apartamento de classe média. João vem da casa de detenção e de uma fuga pela vida morro abaixo. As diferenças que os separam se resolvem no mínimo denominador comum de solidão e desamparo. O encontro, por fugaz que seja, devolve a ambos, por um instante, a vontade de continuar.
Um verdadeiro encontro, aliás, é sempre isso: a descoberta de uma fragilidade comum. Também os verdadeiros encontros (de todo tipo, amorosos ou não) justificam a esperança, fazem com que valha a pena acreditar nas viradas que talvez nunca cheguem. Por isso vale a pena passar o ano naquele telhado.
Mas para nós espectadores o encontro não é com João ou com Maria. Nosso encontro é com uma imagem de nossas próprias vidas que pode ser triste, mas nos dá vontade de viver e dignidade para isso. Walter Salles e Daniela Thomas transformam as misérias cotidianas em imagens, palavras, histórias que valem a pena ser vividas porque mereceram ser narradas.
Se reconhecer na solidão silenciosa, indignada e fatal de João, no desamparo de Maria ou na agitação maníaca de Chico é uma maneira de reconhecer que nossa banalidade sofrida é, de uma certa forma, apetecível.
Os diretores do "Primeiro Dia" conseguem isso à força de ternura. É por seu olhar apaixonado (ou mesmo fascinado) que assistimos às nossas tribulações.
Certamente, o filme carrega a esperança de um Brasil pacificado, onde as diferenças sociais se resolvam em um encontro, ou seja, na descoberta do único patrimônio comum que valha: nossas fragilidades.
Ora, falando em Brasil, não consigo esquecer um momento aparentemente marginal no filme. É o episódio do farmacêutico (Nelson Sargento). Com um sorriso, uma mentira e a promessa de pagar um táxi especial, Maria consegue convencê-lo a lhe vender sem receita um sonífero de tarja preta.
Em um diálogo pudico e bonito, o homem se dá conta que o propósito de Maria não é dormir ou então é dormir além da conta. Firme e gentilmente, ele corta o trato.
Pouca ou nenhuma hipóstase da lei, um pouco de corrupção, o favor que reina e, como diria Chico, no fim o vermelhão se abala e triunfa. Neste Brasil, dá para comprar barbitúrico sem receita mas, se for para se suicidar, imagino que nosso farmacêutico recusaria - mesmo se Maria tivesse a receita. A cena me deu saudade.
Enfim, por informação: os diálogos são imperdíveis. Fernanda Torres e Matheus Nachtergaele também.


Avaliação:     


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