São Paulo, terça-feira, 23 de outubro de 2001

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25ª MOSTRA BR DE CINEMA DE SÃO PAULO

"LAVOURA ARCAICA"

Adaptação de romance homônimo de Raduan Nassar é exibida hoje e amanhã

Carvalho faz retrato do tempo

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Pedro é o primogênito que zela pela tradição, seguindo a prece de pureza austera do pai. Ele encabeça a ala direita da mesa, o galho que se desenvolveu naturalmente do tronco familiar.
André é o filho torto, o epiléptico, o possuído, que levou seu amor visceral pela família até as últimas consequências. Ele faz parte da ala esquerda, o galho enxertado da árvore familiar, encabeçado pela mãe, cuja afetividade cega (e táctil) acabou por germinar, em meio ao templo paterno, uma semente de perdição.
Em relação a Raduan Nassar, o pai dessa que é uma das histórias mais belas da literatura brasileira, Luiz Fernando de Carvalho, o diretor de "Lavoura Arcaica", comporta-se como Pedro. Paciente e laboriosamente, segue as palavras do "pai" ("amor, união, trabalho"), mantendo-se escrupulosamente fiel à poesia e ao ritmo, às imagens e à estrutura do texto de Nassar. Mais do que apostar no potencial cinematográfico do romance ou no potencial romanesco do cinema, Carvalho faz uma aposta no tempo.
Fiel à letra, a adaptação de Aluisio Abranches para "Um Copo de Cólera", o outro romance de Nassar, também era. Se a adaptação de Carvalho, ao contrário da de Abranches, chega ao espírito do livro, é porque Carvalho teve não apenas talento, mas paciência. Ele se curvou, tal como reza o preceito paterno do livro, à vontade do tempo, servindo-se da literatura para descobrir, pouco a pouco, durante o filme, o seu cinema.
Pedro encontra André. O filme ainda não encontrou o livro. Em princípio, durante a conversa dos irmãos, Carvalho corre atrás de Nassar, contentando-se em ilustrar, redundante, o texto do outro, tal como a imaginação de Pedro, sempre incapaz de alcançar os desvarios do irmão desgarrado.
Quando a mise-en-scène de Carvalho o leva naturalmente a criar um signo ótico ou sonoro puro (como o som progressivo e orgástico do trem do primoroso plano de abertura), independente do texto, seu filme cresce.
Mas o cineasta só alcança o texto quando encontra a dimensão própria do tempo, esse tempo de espera da casa velha onde André tece a armadilha para sua irmã, Ana. Filme e livro passam então a caminhar lado a lado, num processo que parece simultâneo ao lento desvelar da paixão incestuosa do filho torto pela irmã faceira -tema trágico já visitado por Carvalho em "Os Maias".
Tema central do livro, o tempo, paciente e laborioso para o pai, algoz e demoníaco para o filho, pareceu uma preocupação sempre presente nas investigações estéticas de Carvalho: dos planos longos de suas primeiras novelas ao andamento viscontiano de "Os Maias". Era o que o afastava da TV e o aproximava do cinema.
Descobrindo o tempo interno de seu filme, Carvalho descobre o cinema, uma revelação. "Lavoura Arcaica" -que compete no Festival de Roterdã entre 23 de janeiro e 3 de fevereiro- faz-se então um filme sobre as diversas maneiras que o tempo tem de passar sobre os personagens e as diversas maneiras que os personagens têm de passar no tempo.


Lavoura Arcaica
    
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Produção: Brasil, 2001
Com: Selton Mello, Leonardo Medeiros
Quando: hoje, às 20h10, no Espaço Unibanco; e amanhã, às 17h, no Cinearte



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