São Paulo, sábado, 23 de novembro de 2002

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HISTÓRIA

Gaspari vê dialética da bagunça


Jornalista interpreta que desordem militar ajuda a explicar ao mesmo tempo o início e o fim do regime


DA SUCURSAL DO RIO

Nos dois capítulos que abrem seu segundo livro sobre o regime militar, 27 páginas de um ensaio histórico sobre a tortura, Elio Gaspari reescreve a passagem das criancinhas:
"Imagine-se um avião cheio de crianças no qual se sabe que há uma bomba. Ela explodirá dentro de duas horas, e acaba de ser preso o terrorista que com quase toda a certeza sabe onde ela foi escondida. Ele se recusa a falar. Baixa o pau?"
A diferença do autor para os apologistas da tortura, para quem formulações como a das criancinhas são conclusivas (a favor do emprego da força), é a sua resposta negativa. E, ao contrário de alguns antagonistas da violência, não ignora o apelo do dilema de torturar ou não em situação limítrofe.
"Há um truque de lógica", escreve. "Finge demonstrar a necessidade da tortura quando, na realidade, o que busca é a sua inimputabilidade. Não se trata de autorizar a tortura para salvar as crianças, mas um entendimento de que, uma vez autorizada, ela deve ficar impune."
"Além disso, através da particularidade do exemplo do avião das crianças, ela busca uma generalização por meio da qual se dá ao torturador o direito de decidir quando as circunstâncias requerem o suplício."
No caso da ditadura brasileira, o tormento infligido aos oposicionistas foi decisivo na derrota das organizações armadas. Gaspari descreve-o em detalhes. Foi seguido do extermínio físico e do sumiço de corpos.
Mesmo o general Ernesto Geisel, em cujo governo (1974-79) os açougues de carne humana deixaram de ser política oficial, defendeu, anos após se despedir da Presidência, a legitimidade da tortura "em certos casos".
Gaspari produziu numerosos capítulos com o impacto dos dedicados à tortura: a agitação militar de 1977; o golpe de 1964 ("O Exército Dormiu Janguista" e "O Exército Acordou Revolucionário"); a sessão que sacramentou o AI-5; uma aula de tortura em quartel; a ação da Igreja; a fuga do guerrilheiro Carlos Lamarca (1937-71) do Vale do Ribeira e a sua morte no sertão baiano; e a Guerrilha do Araguaia, em 66 páginas que arrematam o segundo volume sob o título de "A Floresta dos Homens sem Alma".
Sobre a anêmica disposição de resistência de João Goulart em 1964, diagnostica: "[O presidente] não era um covarde, mas habituara-se a contornar os caminhos da coragem". Inventaria o suporte dos EUA à conspiração.
Chama de "terroristas" os guerrilheiros urbanos, explicando a opção controversa com uma nota metodológica.
Os combatentes do Araguaia são considerados "guerrilheiros". Os confrontos (poucos) e assassinatos (muitos) na selva são revividos como um épico.
Gaspari recupera alguns dos mais significativos depoimentos originais de habitantes da região e autopsia a única iniciativa armada contra a ditadura que logrou apoio da população local.
Revela que muitos corpos foram despejados no mar. Na ponta do lápis, comprova que um chefe militar do PC do B, Ângelo Arroyo, abandonou à própria sorte mais de 30 liderados no Araguaia.
Estudante comunista em 1964, Gaspari construiu sua síntese sobre os anos militares: com tamanhas indisciplina e quebra de hierarquia na caserna, o 1º de abril viria cedo ou tarde.
O fim? "Para quem quiser cortar o caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery [do Couto e Silva] desmontaram a ditadura, a resposta é simples: porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande bagunça."
A ditadura, interpreta o autor, raiou e definhou em parte devido à desordem. Elio Gaspari, seu biógrafo, descobriu a dialética da bagunça. (MÁRIO MAGALHÃES)


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