São Paulo, sábado, 23 de novembro de 2002

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HISTÓRIA

REGIME MILITAR

Em dois volumes, o jornalista Elio Gaspari auxilia a entender o quanto o Brasil avançou a partir de 1964

Relato vivo reconstrói início da ditadura

KENNETH MAXWELL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quase 40 anos já se passaram desde o golpe militar que depôs João Goulart e inaugurou 21 anos de ditadura no Brasil. E os primeiros dois volumes da "magnum opus" de Elio Gaspari -que, quando estiver pronta, terá cinco- não poderiam ter sido publicados num momento mais propício. Com a posse de Lula na Presidência, dentro em breve, sem qualquer discussão, muito menos receio, de conspirações militares ou civis para impedir que aconteça, é salutar recordar quanto o Brasil já avançou desde os idos de 1964.
O relato vívido feito por Gaspari recorda um tempo -que, esperamos, faz parte do passado distante- de golpes e contragolpes, de conspiradores militares inveterados e de choques de rua violentos entre estudantes e soldados. Foi a época da Guerra Fria, quando Washington, Havana e Moscou interferiam nas lutas políticas internas do Brasil. E foi uma era de terror perpetrado pelo Estado contra seus cidadãos e de terrorismo da esquerda e da direita perpetrado por uma contra a outra.
Elio Gaspari diz que não teve por objetivo escrever uma história abrangente do regime militar brasileiro. Em lugar disso, sua intenção foi analisar a intersecção das vidas e das ações dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, lançando uma luz sobre muitos dos segredos internos daqueles anos sombrios e por vezes sinistros.
Esses dois homens -Geisel, o "Sacerdote", e Golbery, o "Feiticeiro"- estiveram, entre 1964 e 1967, entre os principais criadores do regime. Dez anos mais tarde, entre 1974 e 1979, empreenderam a tarefa de desmantelar o "monstro" que haviam criado juntos. Gaspari escreve: "Como é fácil chegar a uma ditadura, e como é difícil sair dela". Ou, como disse o general Golbery ao então diretor do SNI (organização que ele próprio criara e que dirigiu por três anos) no dia em que deixou o Palácio do Planalto, em agosto de 1981, "Vocês pensam que vão controlar o país cometendo crimes e encobrindo seus autores, mas estão muito enganados. Vão ser postos daqui para fora, com um pé na bunda".
Na realidade, porém, Gaspari ainda não alcançou o âmago desta história em especial, embora inicie seu primeiro volume com um relato do dramático 12 de outubro de 1977, o dia em que o então presidente Geisel enfrentou seu ministro do Exército, general Sylvio Frota, e restabeleceu a autoridade do presidente sobre as Forças Armadas.
O que Gaspari faz aqui, ao longo das quase mil páginas desses dois volumes, é escrever o prelúdio, reconstruindo a primeira década da ditadura. E ele o faz em grande estilo, com detalhes extremamente interessantes e uma narrativa ágil e veloz que certamente farão desta obra uma das realmente grandes contribuições à história brasileira, comparável, em termos de visão e detalhes, ao grande trabalho de Joaquim Nabuco sobre seu pai ("Um Estadista do Império: Nabuco de Araújo"), que delineou desde o interior a história política do Império brasileiro. Esta é também, em grande medida, uma história escrita de dentro para fora, repleta de detalhes inesquecíveis, depoimentos que metem medo, histórias de incompetência e acidentes e de consequências pretendidas e outras não.
Desde 1984, quando Gaspari começou a escrever seus livros, ele já acumulou milhares de documentos e centenas de entrevistas. Com senso jornalístico brilhante, ele os tece para formar uma tapeçaria rica em detalhes, uma história que capta muitos dos pontos de virada críticos que marcaram a história brasileira desse período.
Assim, passamos de uma reconstrução hora por hora do golpe de 1964 -um curioso balé de cegos, de manobras e contramedidas e de desenlaces incertos, no qual nenhum soldado morreu e telefonemas dados em momentos estratégicos se mostraram mais eficazes do que blindados-, passando pela história da construção dos instrumentos com os quais o regime exerceu seu poder ditatorial, até chegar à ascensão da oposição de esquerda armada, ao desenvolvimento das redes internacionais que apoiaram as atividades da guerrilha, além das redes que acabaram por denunciar os torturadores abrigados no Estado brasileiro.
Vemos aqui a ascensão do SNI, o uso sistemático da tortura e como ele era básico para o aparelho repressivo do regime, o surgimento dos movimentos de guerrilha urbana e o audacioso sequestro do embaixador americano. Passamos de uma quase farsa de teatro de revista para momentos de puro terror.
Esta é uma história que nos leva para as profundezas internas do regime e também até as maquinações de seus adversários, tanto à esquerda quanto à direita. A história da ditadura apresentada por Gaspari segue o estilo do livro "All the President's Men" ("Todos os Homens do Presidente"), de Bob Woodward e Carl Bernstein -mas é muito melhor do que ele.
Diferentemente de trabalhos americanos baseados em grande medida em citações cuja fonte não é identificada ou em informantes anônimos, tal como o notório "Garganta Profunda", que pode nem ter existido, Elio Gaspari fornece rodapés completos e abrangentes.
O leitor pode ver exatamente com quem, onde e quando Gaspari obteve as informações que fundamentam sua narrativa, e ele fornece bibliografia, cronologia e índice abrangentes. Assim, sua obra é aquela história incomum que ao mesmo tempo satisfaz os mais altos critérios acadêmicos e é escrita com um estilo e dinamismo que a torna inteiramente acessível ao grande público. É um livro que todos os brasileiros devem ler se quiserem compreender um dos regimes que teve vida mais longa no século 20 e ver quão profundamente ele influiu sobre todos os aspectos das instituições e da psicologia nacionais.
O primeiro volume nos leva desde o golpe até a edição do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968, e a notória aula de tortura de outubro de 1969, ministrada no quartel da Vila Militar do Rio. E o segundo volume leva a história adiante, passando pelo chamado milagre econômico brasileiro e chegando ao relato dramático da aniquilação dos guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil nas matas do Araguaia em 1974.
Muitas figuras que ainda estão no cenário político brasileiro aparecem nessas páginas, desde Delfim Netto até José Dirceu. Gaspari mostra como o regime, tendo derrotado seus adversários, também estava, ao mesmo tempo, se fragmentando de dentro para fora, consumido e minado pelos próprios instrumentos de repressão que criara para preservar seu poder. E o palco está preparado para a história que Gaspari se propôs a contar 18 anos atrás, a de Geisel e Golbery.
O autor aparece pouco em sua obra. Há uma exceção no primeiro volume, na nota de rodapé 2 da página 277. Ela acontece depois de uma descrição do ataque da PM, lançado em 28 de março de 1968, a um grupo de estudantes que pedia melhores instalações para o restaurante do Calabouço, no Rio, um restaurante de comida barata onde um estudante de 17 anos foi morto a tiros. Seu corpo forneceu, pela primeira vez desde o golpe de 64, um mártir da luta entre o regime e os estudantes. Gaspari escreve: "De 1960 a 1962, comi no Calabouço. Só nele".
Uma observação: Gaspari cita, como conceito absolutista romano, a idéia de que "a segurança pública é a lei suprema" (vol. 2, pág. 17). Era a explicação dada pelo general Emilio Garrastazú Medici para justificar a mão de ferro da ditadura: "Era uma guerra, depois da qual foi possível devolver a paz ao Brasil. Eu acabei com o terrorismo neste país. Se não aceitássemos a guerra, se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o terrorismo". O presidente Bush pode pensar o mesmo. Mas não acredito que tenha sido isso o que os romanos quiseram dizer.
O que Cícero escreveu em "De Legibus" foi "salus populi suprema lex esto" -"que o bem-estar do povo seja a lei suprema". Essa é, no mínimo, uma tradução mais encorajadora. Esperemos que seja mais relevante ao Brasil de 2003.


Kenneth Maxwell, 61, é historiador. Seu livro mais recente, "Mais Malandros: Ensaios Tropicais e Outros", será lançado pela editora Paz e Terra na primeira semana de dezembro.
Tradução Clara Allain


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