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HISTÓRIA
REGIME MILITAR
Em dois volumes, o jornalista Elio Gaspari auxilia a entender o quanto o Brasil avançou a partir de 1964
Relato vivo reconstrói início da ditadura
KENNETH MAXWELL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quase 40 anos já se passaram
desde o golpe militar que depôs João Goulart e inaugurou 21
anos de ditadura no Brasil. E os
primeiros dois volumes da "magnum opus" de Elio Gaspari
-que, quando estiver pronta, terá cinco- não poderiam ter sido
publicados num momento mais
propício. Com a posse de Lula na
Presidência, dentro em breve,
sem qualquer discussão, muito
menos receio, de conspirações
militares ou civis para impedir
que aconteça, é salutar recordar
quanto o Brasil já avançou desde
os idos de 1964.
O relato vívido feito por Gaspari
recorda um tempo -que, esperamos, faz parte do passado distante- de golpes e contragolpes, de
conspiradores militares inveterados e de choques de rua violentos
entre estudantes e soldados. Foi a
época da Guerra Fria, quando
Washington, Havana e Moscou
interferiam nas lutas políticas internas do Brasil. E foi uma era de
terror perpetrado pelo Estado
contra seus cidadãos e de terrorismo da esquerda e da direita perpetrado por uma contra a outra.
Elio Gaspari diz que não teve
por objetivo escrever uma história abrangente do regime militar
brasileiro. Em lugar disso, sua intenção foi analisar a intersecção
das vidas e das ações dos generais
Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, lançando uma luz sobre
muitos dos segredos internos daqueles anos sombrios e por vezes
sinistros.
Esses dois homens -Geisel, o
"Sacerdote", e Golbery, o "Feiticeiro"- estiveram, entre 1964 e
1967, entre os principais criadores
do regime. Dez anos mais tarde,
entre 1974 e 1979, empreenderam
a tarefa de desmantelar o "monstro" que haviam criado juntos.
Gaspari escreve: "Como é fácil
chegar a uma ditadura, e como é
difícil sair dela". Ou, como disse o
general Golbery ao então diretor
do SNI (organização que ele próprio criara e que dirigiu por três
anos) no dia em que deixou o Palácio do Planalto, em agosto de
1981, "Vocês pensam que vão
controlar o país cometendo crimes e encobrindo seus autores,
mas estão muito enganados. Vão
ser postos daqui para fora, com
um pé na bunda".
Na realidade, porém, Gaspari
ainda não alcançou o âmago desta
história em especial, embora inicie seu primeiro volume com um
relato do dramático 12 de outubro
de 1977, o dia em que o então presidente Geisel enfrentou seu ministro do Exército, general Sylvio
Frota, e restabeleceu a autoridade
do presidente sobre as Forças Armadas.
O que Gaspari faz aqui, ao longo
das quase mil páginas desses dois
volumes, é escrever o prelúdio, reconstruindo a primeira década da
ditadura. E ele o faz em grande estilo, com detalhes extremamente
interessantes e uma narrativa ágil
e veloz que certamente farão desta
obra uma das realmente grandes
contribuições à história brasileira,
comparável, em termos de visão e
detalhes, ao grande trabalho de
Joaquim Nabuco sobre seu pai
("Um Estadista do Império: Nabuco de Araújo"), que delineou
desde o interior a história política
do Império brasileiro. Esta é também, em grande medida, uma
história escrita de dentro para fora, repleta de detalhes inesquecíveis, depoimentos que metem
medo, histórias de incompetência
e acidentes e de consequências
pretendidas e outras não.
Desde 1984, quando Gaspari começou a escrever seus livros, ele já
acumulou milhares de documentos e centenas de entrevistas. Com
senso jornalístico brilhante, ele os
tece para formar
uma tapeçaria rica em detalhes,
uma história que
capta muitos dos
pontos de virada
críticos que marcaram a história
brasileira desse
período.
Assim, passamos de uma reconstrução hora
por hora do golpe
de 1964 -um curioso balé de cegos, de manobras
e contramedidas
e de desenlaces
incertos, no qual
nenhum soldado morreu e telefonemas dados em momentos estratégicos se mostraram mais eficazes do que blindados-, passando pela história da construção
dos instrumentos com os quais o
regime exerceu seu poder ditatorial, até chegar à ascensão da oposição de esquerda armada, ao desenvolvimento das redes internacionais que apoiaram as atividades da guerrilha, além das redes
que acabaram por denunciar os
torturadores abrigados no Estado
brasileiro.
Vemos aqui a ascensão do SNI,
o uso sistemático da tortura e como ele era básico para o aparelho
repressivo do regime, o surgimento dos movimentos de guerrilha urbana e o audacioso sequestro do embaixador americano. Passamos de uma quase farsa
de teatro de revista para momentos de puro terror.
Esta é uma história que nos leva
para as profundezas internas do
regime e também até as maquinações de seus adversários, tanto à esquerda quanto à
direita. A história
da ditadura apresentada por Gaspari segue o estilo
do livro "All the
President's Men"
("Todos os Homens do Presidente"), de Bob
Woodward e Carl
Bernstein -mas é
muito melhor do
que ele.
Diferentemente
de trabalhos americanos baseados
em grande medida
em citações cuja fonte não é identificada ou em informantes anônimos, tal como o notório "Garganta Profunda", que pode nem
ter existido, Elio Gaspari fornece
rodapés completos e abrangentes.
O leitor pode ver exatamente
com quem, onde e quando Gaspari obteve as informações que
fundamentam sua narrativa, e ele
fornece bibliografia, cronologia e
índice abrangentes. Assim, sua
obra é aquela história incomum
que ao mesmo tempo satisfaz os
mais altos critérios acadêmicos e é
escrita com um estilo e dinamismo que a torna inteiramente acessível ao grande público. É um livro que todos os brasileiros devem ler se quiserem compreender
um dos regimes que teve vida
mais longa no século 20 e ver
quão profundamente ele influiu
sobre todos os aspectos das instituições e da psicologia nacionais.
O primeiro volume nos leva
desde o golpe até a edição do Ato
Institucional número 5, em dezembro de 1968, e a notória aula
de tortura de outubro de 1969, ministrada no quartel da Vila Militar
do Rio. E o segundo volume leva a
história adiante, passando pelo
chamado milagre econômico brasileiro e chegando ao relato dramático da aniquilação dos guerrilheiros do Partido Comunista do
Brasil nas matas do Araguaia em
1974.
Muitas figuras que ainda estão
no cenário político brasileiro aparecem nessas páginas, desde Delfim Netto até José Dirceu. Gaspari
mostra como o regime, tendo
derrotado seus adversários, também estava, ao mesmo tempo, se
fragmentando de dentro para fora, consumido e minado pelos
próprios instrumentos de repressão que criara para preservar seu
poder. E o palco está preparado
para a história que Gaspari se propôs a contar 18 anos atrás, a de
Geisel e Golbery.
O autor aparece pouco em sua
obra. Há uma exceção no primeiro volume, na nota de rodapé 2 da
página 277. Ela acontece depois
de uma descrição do ataque da
PM, lançado em 28 de março de
1968, a um grupo de estudantes
que pedia melhores instalações
para o restaurante do Calabouço,
no Rio, um restaurante de comida
barata onde um estudante de 17
anos foi morto a tiros. Seu corpo
forneceu, pela primeira vez desde
o golpe de 64, um mártir da luta
entre o regime e os estudantes.
Gaspari escreve: "De 1960 a 1962,
comi no Calabouço. Só nele".
Uma observação: Gaspari cita,
como conceito absolutista romano, a idéia de que "a segurança
pública é a lei suprema" (vol. 2,
pág. 17). Era a explicação dada pelo general Emilio Garrastazú Medici para justificar a mão de ferro
da ditadura: "Era uma guerra, depois da qual foi possível devolver
a paz ao Brasil. Eu acabei com o
terrorismo neste país. Se não aceitássemos a guerra, se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o terrorismo". O presidente
Bush pode pensar o mesmo. Mas
não acredito que tenha sido isso o
que os romanos quiseram dizer.
O que Cícero escreveu em "De
Legibus" foi "salus populi suprema lex esto" -"que o bem-estar
do povo seja a lei suprema". Essa
é, no mínimo, uma tradução mais
encorajadora. Esperemos que seja
mais relevante ao Brasil de 2003.
Kenneth Maxwell, 61, é historiador.
Seu livro mais recente, "Mais Malandros:
Ensaios Tropicais e Outros", será lançado
pela editora Paz e Terra na primeira semana de dezembro.
Tradução Clara Allain
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