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RODAPÉ
A história secreta dos mongóis
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Na semana passada, após
meses de procura, finalmente encontrei certo livro, e esta semana o recebi pelo correio. Trata-se de "A Mongolok Titkos Története", a tradução húngara da
"História Secreta dos Mongóis",
realizada por Lajos Ligeti e Géza
Képes e publicada em 1962, em
Budapeste.
O interesse dessa edição (para
quem sabe húngaro) consiste não
só no fato de que Ligeti era um
dos maiores pesquisadores da
história da Ásia Central e especialista nas línguas da região, mas
também na qualidade que Képes,
um poeta europeu que se deu ao
trabalho de aprender mongol, assegurou à versão dos poemas entremeados na narrativa.
Não que isso torne menos importantes as outras traduções. A
pioneira, de Haenisch, para o alemão (1941), a parcial, de Pelliot,
para o francês (1949), a americana
de Cleaves (dos anos 50, mas publicada em 82) que, usando uma
variante arcaica da língua, levou o
poeta Paul Kahn a adaptá-la ao
inglês contemporâneo (1984,
1998), bem como a recente de Marie-Dominique Even e Rodica
Pop, completa para o francês (Gallimard, 1994), todas elas se complementam.
"A História Secreta", uma crônica do século 13 na qual se misturam mito e história, áridas genealogias e poesia deslumbrante, é
sobretudo uma biografia de Temudjin, ou melhor Tchinguz
Khan, também conhecido como
Gêngis Cã (1167 [ano do porco"
-1227), o conquistador nômade
que, unificando as tribos dispersas e rivais de sua nação de arqueiros a cavalo, desencadeou o
processo que, em duas ou três gerações, resultaria na consolidação
do maior império da história, limitado no Ocidente pelas fronteiras da Áustria e da Alemanha e,
no extremo oposto, pelos confins
orientais da China.
O livro é também o único documento substancial legado por esses conquistadores cujo sucesso
decorreu do planejamento estratégico, da capacidade organizacional e de uma rede de comunicações não rivalizados, nenhum
dos três, antes dos séculos 19/20.
Composto provavelmente na
escrita dos uigures logo depois da
morte do Khan, o original não sobreviveu, e o que nos chegou é
uma transcrição fonética em caracteres chineses, realizada numa
escola de intérpretes, um século e
meio depois, nas primeiras décadas da dinastia Ming que sucedeu
a Yüan, a dos imperadores mongóis, durante a qual os chineses
foram proibidos de aprender o
mongol. Essa transcrição vinha
acompanhada de uma glosa chinesa do texto a partir da qual se
prepararam algumas traduções,
como a de Arthur Waley (1963).
Se toda essa história parece exótica, tal impressão comprova a veracidade de um conceito mal usado e muito abusado: o eurocentrismo. Pois, como os problemas
de sucessão que, obrigando periodicamente os comandantes a interromperem suas campanhas e
voltarem à Mongólia, pouparam
a Europa Ocidental cristã da destruição que, no restante da Eurásia, implicou em séculos de atraso
sócio-econômico, foi esse acaso
uma das causas menos exploradas (pois ausente da consciência
ocidental) da vantagem relativa
que propiciou aos europeus cerca
de meio milênio de hegemonia
planetária.
O livro, localizei-o pela internet
num antiquário orientalístico de
Leyden, na Holanda. Uma demonstração assim de que as lições
do império mongol acerca da centralidade das redes de comunicação foram, se bem que com atraso, devidamente assimiladas, sugere que a hegemonia ocidental
não se eclipsará tão cedo.
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