São Paulo, sábado, 23 de novembro de 2002

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RODAPÉ

A história secreta dos mongóis

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Na semana passada, após meses de procura, finalmente encontrei certo livro, e esta semana o recebi pelo correio. Trata-se de "A Mongolok Titkos Története", a tradução húngara da "História Secreta dos Mongóis", realizada por Lajos Ligeti e Géza Képes e publicada em 1962, em Budapeste.
O interesse dessa edição (para quem sabe húngaro) consiste não só no fato de que Ligeti era um dos maiores pesquisadores da história da Ásia Central e especialista nas línguas da região, mas também na qualidade que Képes, um poeta europeu que se deu ao trabalho de aprender mongol, assegurou à versão dos poemas entremeados na narrativa.
Não que isso torne menos importantes as outras traduções. A pioneira, de Haenisch, para o alemão (1941), a parcial, de Pelliot, para o francês (1949), a americana de Cleaves (dos anos 50, mas publicada em 82) que, usando uma variante arcaica da língua, levou o poeta Paul Kahn a adaptá-la ao inglês contemporâneo (1984, 1998), bem como a recente de Marie-Dominique Even e Rodica Pop, completa para o francês (Gallimard, 1994), todas elas se complementam.
"A História Secreta", uma crônica do século 13 na qual se misturam mito e história, áridas genealogias e poesia deslumbrante, é sobretudo uma biografia de Temudjin, ou melhor Tchinguz Khan, também conhecido como Gêngis Cã (1167 [ano do porco" -1227), o conquistador nômade que, unificando as tribos dispersas e rivais de sua nação de arqueiros a cavalo, desencadeou o processo que, em duas ou três gerações, resultaria na consolidação do maior império da história, limitado no Ocidente pelas fronteiras da Áustria e da Alemanha e, no extremo oposto, pelos confins orientais da China.
O livro é também o único documento substancial legado por esses conquistadores cujo sucesso decorreu do planejamento estratégico, da capacidade organizacional e de uma rede de comunicações não rivalizados, nenhum dos três, antes dos séculos 19/20.
Composto provavelmente na escrita dos uigures logo depois da morte do Khan, o original não sobreviveu, e o que nos chegou é uma transcrição fonética em caracteres chineses, realizada numa escola de intérpretes, um século e meio depois, nas primeiras décadas da dinastia Ming que sucedeu a Yüan, a dos imperadores mongóis, durante a qual os chineses foram proibidos de aprender o mongol. Essa transcrição vinha acompanhada de uma glosa chinesa do texto a partir da qual se prepararam algumas traduções, como a de Arthur Waley (1963).
Se toda essa história parece exótica, tal impressão comprova a veracidade de um conceito mal usado e muito abusado: o eurocentrismo. Pois, como os problemas de sucessão que, obrigando periodicamente os comandantes a interromperem suas campanhas e voltarem à Mongólia, pouparam a Europa Ocidental cristã da destruição que, no restante da Eurásia, implicou em séculos de atraso sócio-econômico, foi esse acaso uma das causas menos exploradas (pois ausente da consciência ocidental) da vantagem relativa que propiciou aos europeus cerca de meio milênio de hegemonia planetária.
O livro, localizei-o pela internet num antiquário orientalístico de Leyden, na Holanda. Uma demonstração assim de que as lições do império mongol acerca da centralidade das redes de comunicação foram, se bem que com atraso, devidamente assimiladas, sugere que a hegemonia ocidental não se eclipsará tão cedo.


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