São Paulo, sexta-feira, 23 de novembro de 2007

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Crítica/"Lady Chatterley"

Clássico literário ganha filme à sua altura

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Lady Chatterley" teve até aqui um destino cinematográfico ingrato, submetido ao mesmo tempo à BBC e aos frufrus de Ken Russell ou ao sensacionalismo publicitário de Just Jaecklin. Sua reputação nas telas passa muito longe do romance de D.H. Lawrence, um dos pilares da literatura no século 20. Essa dificuldade não vem apenas do tema: o amor de Constance Chatterley pelo guarda-caça Parkin (personagem de uma segunda e, ao que se diz, aperfeiçoada versão do livro), um amor que é antes de tudo físico. O que deveria ser o apanágio por excelência do cinema, mostrar a pele e suas sensações, tornou-se uma camisa de força: se o romance em si foi um escândalo que atravessou o século, a natureza explosiva da imagem acabou por torná-la quase inviável.
O caráter libertador do livro, que já era ameaçador, mostrava-se bem mais subversivo e incômodo no cinema. Pascale Ferran certamente se beneficia de filmar no século 21, com um recuo no tempo e um reconhecimento da obra literária que terminam por calar mesmo os mais moralistas, por um lado. Por outro, ela bota ordem na casa e faz um filme fiel à intenção de Lawrence de "tornar a relação sexual autêntica e preciosa, em lugar de vergonhosa".

Fim de uma era
Em primeiro lugar, tratou de dar ao sexo e à sexualidade seu lugar devido, mas evitou aquela vulgaridade que consiste em ver Constance como a mulher de um homem impotente por ferimento de guerra. É isso, mas é mais do que isso: o que o filme vê é o fim de uma era, a que precedeu 1918 e o final da Primeira Guerra Mundial, de uma aristocracia onipotente numa Inglaterra idem.
Nada melhor do que a cena de Clifford com sua cadeira de rodas mecânica para exprimir um desespero que, certamente, é pessoal, mas nem por isso deixa de nos falar de um mundo cujas coordenadas nos escapam e ofendem.
Constance Chatterley participa apenas de maneira indireta desse mundo. Ela pode servir seu chá, mas é à natureza que está ligada. Ela é toda natureza. Humana, entre outras: o bastante, por exemplo, para se contemplar com satisfação diante do espelho. Ou para dar valor enorme às coisas que vêm da terra.
Não é o caso de Parkin. O guarda-caça do domínio dos Chatterley é, sem dúvida, um homem da natureza. Sua condição social de certa forma o incapacita ao exercício da propriedade sobre Constance, sua patroa. Isso ajuda na aproximação entre os dois, embora o fundamental seja o caráter sexuado do homem, de que Constance se dá conta com rapidez aliás fulminante. O resto será, como define a própria Ferran, um retrato em movimento, como uma paisagem vista por alguém que se desloca.
"Lady Chatterley" é um filme feminino, pelo olhar. Mas talvez até mesmo se possa usar a respeito dele a palavra feminista, menos por uma reivindicação ao prazer sexual como direito (ele está implícito) e mais pelo exercício de uma sensibilidade e de um olhar que se entregam à liberdade de maneira plena, talvez porque tenham pouco a perder.


LADY CHATTERLEY
Direção:
Pascale Ferran
Produção: França/Bélgica/Inglaterra, 2007
Com: Marina Hands, Jean-Louis Coullo'ch, Hippolyte Girardot
Onde: estréia hoje nos cines Frei Caneca Unibanco Arteplex e Reserva Cultural
Avaliação: ótimo


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