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Otto evoca Kafka e retorna após crise
Cantor tenta se reerguer de inferno pessoal e lança CD de inéditas após 6 anos: "As pessoas ficaram descrentes do meu trabalho"
Produzido com dinheiro próprio, disco que faz referência a "A Metamorfose" sai depois de separação, saída de gravadora e morte da mãe
MARCUS PRETO
DA REPORTAGEM LOCAL
Em menos de uma hora, Otto, 41, chorou três vezes, na
quarta-feira passada. Foi a primeira entrevista desde a morte
da mãe, seis dias antes, naquele
que considera o último ato de
uma tragédia pessoal que já dura mais de dois anos.
O fim do casamento com a
atriz Alessandra Negrini, o
rompimento com empresários
e com a Trama, gravadora que o
lançou, a dificuldade em concluir um novo disco. De conhecimento público, alguns desses
fatos já estavam encontrando
um lugar tranquilo no espírito
do cantor quando a notícia da
morte veio de Pernambuco.
"Depois disso, não tem como
levar uma lapada maior", diz o
músico. "Nos últimos dias, ela
deu tudo o que ainda tinha de
gás pra eu conseguir me levantar. Rezou pra eu sair das merdas das drogas em que entrei,
segurou minha onda até o fim.
Sem isso, não sei como eu teria
chegado aqui hoje."
O "aqui hoje" a que se refere é
o instante de enfim ver disponível em solo nacional "Certa
Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos", quarto álbum de
estúdio -seis anos após o anterior, "Sem Gravidade".
Produzido por ele e Pupillo,
foi lançado antes nos Estados
Unidos, no meio do ano, pelo
selo Waxpoetics. É o primeiro
independente de Otto, que diz
não ter se entendido financeiramente com a gravadora que
lançara seus CDs anteriores.
"A Trama me ofereceu dez
paus pra fazer o disco. Com esse dinheiro eu não poderia ter
os músicos que tenho, Pupillo,
Catatau. Não dava", diz. "Ainda
me disseram: "Dá sim, o [disco
do] Cansei de Ser Sexy a gente
fez com 10 mil". Mas o Cansei
de Ser Sexy são quatro meninas. Não posso dizer para músicos tarimbados como os meus
que estou numa gravadora, mas
não tenho como pagá-los."
Otto conta que "o miolo" do
disco foi gravado em apenas
quatro dias. E todo bancado por
ele mesmo, com dinheiro levantado em trabalhos extras
em trilhas e cinema.
Inseto
"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos
intranquilos, encontrou-se em
sua cama metamorfoseado
num inseto monstruoso." O título que Otto escolheu é a frase
que abre "A Metamorfose", de
Franz Kafka (1883-1924).
Transformado em inseto, o
personagem do romance viu
todos os que antes o amavam
virarem-se contra ele, com nojo do que havia se tornado. Otto
conta que, nos últimos tempos,
passou por coisa parecida.
"As pessoas ficaram descrentes do meu trabalho", diz. "Eu,
que cheguei aqui de frente, com
a Nação Zumbi, poderia estar
morto hoje que não iam falar
uma linha do que fiz nesses três
discos passados."
"Falar uma linha", é perceptível, refere-se à imprensa. Segundo Otto, ela é um dos pontos nevrálgicos da alegada "descrença", e sua música não se encaixa no que esperam os formadores de opinião de São Paulo e
Rio, cidades que coabita.
"A imprensa paulista quis
afundar mesmo o meu trabalho. Pra eles, o negócio é cantar
em inglês, e eu não sirvo", diz.
"Já no Rio, vivem de um resgate
do samba. Os caras tocam Noel
Rosa como Noel Rosa fazia -e
eu já estou no pós-Ben Jor, numa quebrada louca de que o
samba já não é mais."
Por fim, considera que sua
história pessoal também contou pontos contra a imagem de
sua música. "Quando você casa
com uma atriz, parece que não
é mais aquele cantor, cai em outras graças. Vira uma celebridade, e isso te desmerece como
artista", diz. "Agora, preciso
desse disco pra recuperar um
crédito que nunca perdi."
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