São Paulo, segunda-feira, 23 de novembro de 2009

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Otto evoca Kafka e retorna após crise

Cantor tenta se reerguer de inferno pessoal e lança CD de inéditas após 6 anos: "As pessoas ficaram descrentes do meu trabalho"

Produzido com dinheiro próprio, disco que faz referência a "A Metamorfose" sai depois de separação, saída de gravadora e morte da mãe

MARCUS PRETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em menos de uma hora, Otto, 41, chorou três vezes, na quarta-feira passada. Foi a primeira entrevista desde a morte da mãe, seis dias antes, naquele que considera o último ato de uma tragédia pessoal que já dura mais de dois anos.
O fim do casamento com a atriz Alessandra Negrini, o rompimento com empresários e com a Trama, gravadora que o lançou, a dificuldade em concluir um novo disco. De conhecimento público, alguns desses fatos já estavam encontrando um lugar tranquilo no espírito do cantor quando a notícia da morte veio de Pernambuco.
"Depois disso, não tem como levar uma lapada maior", diz o músico. "Nos últimos dias, ela deu tudo o que ainda tinha de gás pra eu conseguir me levantar. Rezou pra eu sair das merdas das drogas em que entrei, segurou minha onda até o fim. Sem isso, não sei como eu teria chegado aqui hoje."
O "aqui hoje" a que se refere é o instante de enfim ver disponível em solo nacional "Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos", quarto álbum de estúdio -seis anos após o anterior, "Sem Gravidade".
Produzido por ele e Pupillo, foi lançado antes nos Estados Unidos, no meio do ano, pelo selo Waxpoetics. É o primeiro independente de Otto, que diz não ter se entendido financeiramente com a gravadora que lançara seus CDs anteriores.
"A Trama me ofereceu dez paus pra fazer o disco. Com esse dinheiro eu não poderia ter os músicos que tenho, Pupillo, Catatau. Não dava", diz. "Ainda me disseram: "Dá sim, o [disco do] Cansei de Ser Sexy a gente fez com 10 mil". Mas o Cansei de Ser Sexy são quatro meninas. Não posso dizer para músicos tarimbados como os meus que estou numa gravadora, mas não tenho como pagá-los."
Otto conta que "o miolo" do disco foi gravado em apenas quatro dias. E todo bancado por ele mesmo, com dinheiro levantado em trabalhos extras em trilhas e cinema.

Inseto
"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso." O título que Otto escolheu é a frase que abre "A Metamorfose", de Franz Kafka (1883-1924).
Transformado em inseto, o personagem do romance viu todos os que antes o amavam virarem-se contra ele, com nojo do que havia se tornado. Otto conta que, nos últimos tempos, passou por coisa parecida.
"As pessoas ficaram descrentes do meu trabalho", diz. "Eu, que cheguei aqui de frente, com a Nação Zumbi, poderia estar morto hoje que não iam falar uma linha do que fiz nesses três discos passados."
"Falar uma linha", é perceptível, refere-se à imprensa. Segundo Otto, ela é um dos pontos nevrálgicos da alegada "descrença", e sua música não se encaixa no que esperam os formadores de opinião de São Paulo e Rio, cidades que coabita.
"A imprensa paulista quis afundar mesmo o meu trabalho. Pra eles, o negócio é cantar em inglês, e eu não sirvo", diz. "Já no Rio, vivem de um resgate do samba. Os caras tocam Noel Rosa como Noel Rosa fazia -e eu já estou no pós-Ben Jor, numa quebrada louca de que o samba já não é mais."
Por fim, considera que sua história pessoal também contou pontos contra a imagem de sua música. "Quando você casa com uma atriz, parece que não é mais aquele cantor, cai em outras graças. Vira uma celebridade, e isso te desmerece como artista", diz. "Agora, preciso desse disco pra recuperar um crédito que nunca perdi."


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