São Paulo, segunda, 23 de novembro de 1998

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O eu perdemos na chuva dos meteoritos

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Diante do livro de Ana Cristina César, tenho uma surpresa. O livro é feito de poemas e ilustrado com fotos da autora, que morreu jovem. Ela se deixou fotografar numa estação de esqui. A página já continha um poema, mas no segundo plano da foto estava a frase: "Por motivo de roubo, não empreste sua identidade a estranhos. Ass: A direção".
Lembrei-me de um cartaz metálico colocado no banheiro da casa de um amigo, bem em cima da privada: "Antes de abrir a porta do elevador, verifique se o elevador está parado no andar". As frases me prenderam porque estavam fora do seu lugar, no livro de poemas e no banheiro. Não chegam a ser um "koan", completamente irredutíveis à compreensão intelectual. Apenas frases fora do lugar que me trouxeram um sorriso aos lábios, e, por isso, sou grato aos seus redatores e, sobretudo, aos que as arrancaram do seu contexto.
Digo isso porque fiquei muito grato a algumas crianças que conheço, depois da chuva de meteoritos que caiu no planeta. Tentei me manter acordado, mas, com a promessa de uma longa e extenuante semana, infelizmente dormi e tive de adiar minhas esperanças para daqui a 30 anos, quando a chuva deve reaparecer nos céus.
Mas as crianças viram, e algumas comentaram comigo, na manhã seguinte. Uma delas arriscou a se resfriar, saindo direto da cama para a janela aberta. Estavam felizes com o que viram, aquele brinquedo luminoso atravessando a madrugada.
No entanto, ao que parece, os programas infantis não tocaram no assunto. A chuva de meteoritos, os Leonideas, passou batida pelas telas. Ao que tudo indica, as crianças saíram da cama em busca de alguma coisa maravilhosa, uma surpresa que não encontram no seu cotidiano.
Perdi a chuva de meteoritos, fiquei com as frases fora do contexto, mas que têm para mim a mesma magia que a chuva transmitiu às crianças. Fui buscar essa magia no livro de poemas e a encontrei até escondida no segundo plano da foto.
No próprio discurso político, é possível produzir algumas frases que consigam nesse deslocamento a saída para o inesperado. Não têm o poder de despertar uma iluminação, servem apenas para lembrar que existem outros sentidos e que carecemos deles apesar de sua inutilidade .
Imagine transplantar as primeiras frases de "Conversações na Catedral", de Vargas Llosa, para a tribuna do Congresso: "Senhores, gostaria de saber quando o Peru se fodeu". Não se deve esperar respostas muito adequadas para esse tipo de questão, porque talvez seu deslocamento seja muito brusco. Mas há outros que são absorvidos com mais naturalidade.
Os diálogos formais em cenários políticos sempre deixam uma brecha para a poesia. Todos na verdade a usam, com resultados de qualidade diferentes, é verdade. Os elogios recíprocos, as ironias, tudo é resquício de uma forma poética, perdida no tempo. Num trabalho de comissão, toca-me quase sempre fazer perguntas a um ministro já na hora do almoço, quando estão todos amarelos de fome e ainda há a ligeira náusea do cafezinho servido em copo de papel.
Preparo o texto com maior carinho e, quando releio para mim mesmo aquela pergunta rebuscada, constato: antes do almoço, a filosofia é uma espécie de crueldade. Não deixo de fazer a pergunta, esse é meu trabalho. Gosto apenas de juntar as duas idéias para que todos sintam que existem planos diferentes, e, se ficarmos de olho aberto, podemos descobri-los, como as crianças que foram à janela na noite dos meteoritos.
Dormi debaixo da chuva luminosa. Possivelmente, tenho dormido em inúmeros momentos essenciais, concentrado em minhas funções, no meu papel. Sei apenas que existem outros mundos, onde se chega pela observação aguda, mas também inventando-os com as palavras. Creio que Fernando Pessoa aponte melhor para tudo isso, com seu poema "Tabacaria". Olha tudo com um distanciamento orientalmente recomendável . Aparecem vários universos. Termina recomendando à menina que coma chocolate, não há outra verdade exceto comer chocolate.
O poeta emprestou sua identidade a pessoas estranhas contrariando o aviso da direção. Não houve roubo. Apenas novas vidas, fecundadas por ela. Sei da inutilidade de verificar se o elevador está mesmo no prédio cada vez que vou fazer xixi. No entanto, estou me acostumando com isso, lamentando mesmo não ter tomado essas precauções em outros momentos. Só tomar cuidado para não sair muito do chamado plano real e indagar inadequadamente: quando é que o Brasil...?
Acredito também em certas fusões. No grande expediente, quando se tem 20 minutos, aí não custa nada começar assim: parodiando o escritor Mario Vargas Llosa, às vezes me pergunto: quando é que o Brasil...?
Como as crianças na noite de chuva cósmica, sempre haverá um jeito de harmonizar mundos, criar novos modos de inventar espaços com a palavra, com som e as formas que nos levem para longe daqui, sem descuidarmos, é claro, de todas essas responsabilidades. A gente não quer só comida, isso fica mais claro do que pedaços do céu em noites de meteorito.




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