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O eu perdemos na chuva dos meteoritos
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Diante do livro de Ana Cristina César, tenho uma surpresa.
O livro é feito de poemas e ilustrado com fotos da autora, que
morreu jovem. Ela se deixou fotografar numa estação de esqui.
A página já continha um poema, mas no segundo plano da
foto estava a frase: "Por motivo
de roubo, não empreste sua
identidade a estranhos. Ass: A
direção".
Lembrei-me de um cartaz metálico colocado no banheiro da
casa de um amigo, bem em cima da privada: "Antes de abrir
a porta do elevador, verifique se
o elevador está parado no andar". As frases me prenderam
porque estavam fora do seu lugar, no livro de poemas e no banheiro. Não chegam a ser um
"koan", completamente irredutíveis à compreensão intelectual. Apenas frases fora do lugar
que me trouxeram um sorriso
aos lábios, e, por isso, sou grato
aos seus redatores e, sobretudo,
aos que as arrancaram do seu
contexto.
Digo isso porque fiquei muito
grato a algumas crianças que
conheço, depois da chuva de
meteoritos que caiu no planeta.
Tentei me manter acordado,
mas, com a promessa de uma
longa e extenuante semana, infelizmente dormi e tive de adiar
minhas esperanças para daqui
a 30 anos, quando a chuva deve
reaparecer nos céus.
Mas as crianças viram, e algumas comentaram comigo, na
manhã seguinte. Uma delas arriscou a se resfriar, saindo direto da cama para a janela aberta. Estavam felizes com o que
viram, aquele brinquedo luminoso atravessando a madrugada.
No entanto, ao que parece, os
programas infantis não tocaram no assunto. A chuva de meteoritos, os Leonideas, passou
batida pelas telas. Ao que tudo
indica, as crianças saíram da
cama em busca de alguma coisa
maravilhosa, uma surpresa que
não encontram no seu cotidiano.
Perdi a chuva de meteoritos,
fiquei com as frases fora do contexto, mas que têm para mim a
mesma magia que a chuva
transmitiu às crianças. Fui buscar essa magia no livro de poemas e a encontrei até escondida
no segundo plano da foto.
No próprio discurso político, é
possível produzir algumas frases que consigam nesse deslocamento a saída para o inesperado. Não têm o poder de despertar uma iluminação, servem
apenas para lembrar que existem outros sentidos e que carecemos deles apesar de sua inutilidade .
Imagine transplantar as primeiras frases de "Conversações
na Catedral", de Vargas Llosa,
para a tribuna do Congresso:
"Senhores, gostaria de saber
quando o Peru se fodeu". Não se
deve esperar respostas muito
adequadas para esse tipo de
questão, porque talvez seu deslocamento seja muito brusco.
Mas há outros que são absorvidos com mais naturalidade.
Os diálogos formais em cenários políticos sempre deixam
uma brecha para a poesia. Todos na verdade a usam, com resultados de qualidade diferentes, é verdade. Os elogios recíprocos, as ironias, tudo é resquício de uma forma poética, perdida no tempo. Num trabalho
de comissão, toca-me quase
sempre fazer perguntas a um
ministro já na hora do almoço,
quando estão todos amarelos de
fome e ainda há a ligeira náusea do cafezinho servido em copo de papel.
Preparo o texto com maior carinho e, quando releio para
mim mesmo aquela pergunta
rebuscada, constato: antes do
almoço, a filosofia é uma espécie de crueldade. Não deixo de
fazer a pergunta, esse é meu trabalho. Gosto apenas de juntar
as duas idéias para que todos
sintam que existem planos diferentes, e, se ficarmos de olho
aberto, podemos descobri-los,
como as crianças que foram à
janela na noite dos meteoritos.
Dormi debaixo da chuva luminosa. Possivelmente, tenho
dormido em inúmeros momentos essenciais, concentrado em
minhas funções, no meu papel.
Sei apenas que existem outros
mundos, onde se chega pela observação aguda, mas também
inventando-os com as palavras.
Creio que Fernando Pessoa
aponte melhor para tudo isso,
com seu poema "Tabacaria".
Olha tudo com um distanciamento orientalmente recomendável . Aparecem vários universos. Termina recomendando à
menina que coma chocolate,
não há outra verdade exceto comer chocolate.
O poeta emprestou sua identidade a pessoas estranhas contrariando o aviso da direção.
Não houve roubo. Apenas novas vidas, fecundadas por ela.
Sei da inutilidade de verificar se
o elevador está mesmo no prédio cada vez que vou fazer xixi.
No entanto, estou me acostumando com isso, lamentando
mesmo não ter tomado essas
precauções em outros momentos. Só tomar cuidado para não
sair muito do chamado plano
real e indagar inadequadamente: quando é que o Brasil...?
Acredito também em certas
fusões. No grande expediente,
quando se tem 20 minutos, aí
não custa nada começar assim:
parodiando o escritor Mario
Vargas Llosa, às vezes me pergunto: quando é que o Brasil...?
Como as crianças na noite de
chuva cósmica, sempre haverá
um jeito de harmonizar mundos, criar novos modos de inventar espaços com a palavra,
com som e as formas que nos levem para longe daqui, sem descuidarmos, é claro, de todas essas responsabilidades. A gente
não quer só comida, isso fica
mais claro do que pedaços do
céu em noites de meteorito.
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