São Paulo, terça, 23 de dezembro de 1997.




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RESENHA
'Guerra' expõe subjetividade de Müller

SÉRGIO DE CARVALHO
especial para a Folha

Seria tolice esperar que a autobiografia "Guerra sem Batalha", do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995) contivesse grandes revelações. Nas peças de um bom autor de teatro, existe sempre uma distância dramática entre dizer e ser. Somente personagens tolas expõem de imediato suas reais motivações.
Essa dramatização de si próprio é reforçada no livro pela estrutura dialógica, mantida porque Heiner Müller não escreveu essa autobiografia, mas a reescreveu a partir de entrevistas suas dadas a um grupo de jornalistas.
O procedimento, aliás, é uma constante em sua vida de escritor. Todas suas peças, sem exceção, provém de "síntese de material alheio", prática na qual não se distancia de uma honrosa tradição que inclui suas afinidades eletivas: Shakespeare, Büchner e Brecht.
Müller faz dessa autobiografia outro "material dramático" de sua obra na medida em que ele deixa transparecer a paisagem interna de uma subjetividade, que nunca é construída no todo, mas indicada em cada pedaço. É significativo que sempre faça questão de assinalar a precariedade de sua memória.
O mais revelador do livro está nos esforços de afirmação e negação. Müller não despende maior energia para negar a acusação de envolvimento com a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, porque, segundo tudo indica, isso não significou nada.
Por outro lado, a ênfase com que nega a importância de suas ex-mulheres como colaboradoras ou a precisão com que aponta suas diferenças poéticas com a obra de Brecht são bem eloquentes.
O que ele gosta em Brecht indica aspectos pelos quais ele mesmo gostaria de ser visto. O que lhe interessa é o lado de Brecht "muito alemão, muito fragmentado", sua "velocidade e agressividade" quando se embate com a cidade.
Se ele tem alguma razão ao dizer que os melhores trechos de Brecht não são os amáveis, mas os zangados, e que sua força não está no iluminismo, mas no terrorismo, por outro lado, se esquece que Brecht procurava representar a totalidade das relações sociais e não apenas as zonas obscuras da consciência nacional.
No fundo, Müller tem aguda lucidez sobre sua função e dimensão na história do teatro deste século, o que se nota quando menciona a frase de Schiller, aprendida na adolescência: "Procure alcançar sempre o todo e, se você mesmo não o pode ser, se associe a um todo como colaborador".

Livro: Guerra sem Batalha - Uma vida entre Duas Ditaduras Autor: Heiner Müller Lançamento: editora Estação Liberdade Quanto: R$ 30 (336 págs.)



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